quinta-feira, 28 de abril de 2016

A ORAÇÃO DO ‘PAI NOSSO’ NAS ESCOLAS PÚBLICAS E O ESTADO LAICO


 
Por recomendação do Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul, as escolas da rede municipal de Campo Grande suspenderam a oração do ‘Pai Nosso’, que normalmente era feita no início das aulas. O posicionamento do órgão estadual se deu após a reclamação de um pai de aluno. Em nota, a Secretaria Municipal de Educação explicou que recebeu a orientação da Promotoria dos Direitos Humanos, sob pena de ajuizamento de ação civil pública, para que a oração não seja feita, assim como nenhuma outra manifestação de cunho religioso.
 
Este fato ocorrido em Campo Grande suscitou posicionamentos na sociedade contra e a favor da orientação do MPE/MS. Contudo, é bom lembrar que esta não é uma situação inédita, na medida em que o Ministério Público e o Judiciário no país já foram instados a se pronunciar diversas vezes sobre questões relativas a crenças e práticas religiosas num Estado que se define como laico, tais como, ensino religioso nas escolas públicas; presença de símbolos religiosos em repartições públicas; direito de pessoas de determinada denominação religiosa a não se submeter a provas dos concursos públicos e do ENEM em dia de sábado; assistência religiosa a encarcerados; leitura da bíblia em instituições públicas e nos parlamentos; placas feitas com dinheiro público nas entradas de algumas cidades com os dizeres ‘Aqui Jesus Cristo é o Senhor’; dentre outras situações. Neste sentido, consideramos oportuna a reflexão sobre a laicidade do Estado brasileiro e a liberdade de religião. 

O Brasil começou a se definir como um Estado laico a partir da publicação do Decreto nº 119-A, de 07/01/1890, de autoria de Ruy Barbosa. Até esta data, havia liberdade de crença no país, porém não havia liberdade de culto. A religião oficial era a Católica e os cultos de outras religiões diferentes só eram tolerados no ambiente doméstico. Com o mencionado decreto, houve a separação entre Estado e Igreja e ampliou-se o direito à liberdade religiosa no Brasil republicano. 

De acordo com seu ordenamento jurídico, nosso país reafirma e aprofunda a concepção de Estado secular, sendo que na Constituição e em outras legislações infraconstitucionais estão previstos a liberdade de crença religiosa aos cidadãos, além da proteção e do respeito às diversas manifestações religiosas.  Vejamos:
 No artigo 5º da Constituição Brasileira (1988) está escrito:
“VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;”
“VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa (...), salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.”

Estabeleceu, ainda,  em seu artigo 19, I o seguinte:

“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”

Ao examinarmos as constituições brasileiras do período republicano, observaremos um gradual acolhimento do fenômeno religioso. A atual Carta Magna faz referência à Deus no preâmbulo, apesar de não se constituir como função normativa e expressar uma posição ideológica dos constituintes; admite a justificação de consciência ao brasileiro que se recuse a cumprir obrigação imposta a todos por motivo de crença, somente estabelecendo a perda de direitos políticos aos que negarem cumprir obrigação alternativa (art. 5°, VIII); assegura a prestação de assistência religiosa aos que cumprem penas em presídios (art. 5°, VII); admite relação entre Estado e as religiões quando para colaboração de interesse público (art. 19, I); estabelece imunidade tributária quanto aos impostos incidentes sobre patrimônio, rendas e serviços de entidades religiosas (art. 150, §1°); prevê o ensino religioso, de matrícula facultativa, como parte do conteúdo mínimo em escolas públicas de ensino fundamental, (art. 210, §1°) e; atribui efeito civil ao casamento religioso (art. 226, §2°).
Contudo, o Estado brasileiro, quando se afirma como laico ou secular, baseia-se no conceito de secularismo, onde o poder estatal é oficialmente neutro ou imparcial em relação às questões religiosas. O princípio da laicidade pressupõe que o Estado não possui uma religião oficial, que não intervém nas diversas religiões em atividade no seu território e nem obstaculariza o funcionamento de qualquer organização religiosa, além do que, implica também que nenhuma religião, por sua vez, possa intervir nas ações, normas e estruturas do Estado.
Um Estado laico visa à defesa dos direitos fundamentais do indivíduo, considera todos os seus cidadãos igualmente, independentemente de professar alguma religião ou não, e não deve dar preferência aos adeptos de determinada religião. As ações, políticas públicas e legislações não devem privilegiar nenhuma denominação religiosa, mas seguir o princípio do interesse público numa sociedade marcada pela pluralidade étnica, multiculturalidade e diversidade de pensamento e crença.
O Estado secular é aquele que dá garantias a todos os seus cidadãos de professar livremente uma religião ou seguir uma determinada corrente filosófica, coibindo a discriminação e o constrangimento de crentes e não-crentes ou a imposição de uma fé religiosa a quem quer que seja. Deve também impedir que alguma religião exerça controle ou interfira em questões políticas que possam ferir o direito daqueles cidadãos que não comungam com seus preceitos. Os dogmas de uma determinada fé religiosa não podem determinar a definição das políticas e normas que são estendidas a todas as pessoas em um Estado laico. Sendo assim, as concepções morais religiosas, mesmo que aceitas por uma maioria de cidadãos, não podem guiar as decisões de Estado, devendo, portanto, se limitar às esferas privadas. As convicções e práticas espirituais são decisões de foro íntimo do ser humano, que não pode ser discriminado nem forçado a declinar ou a revelar publicamente sua orientação religiosa.
O conceito de Estado laico, no entanto, não pode ser confundido com o de Estado ateu, uma vez que este não aceita a ideia da existência de Deus e proíbe qualquer prática de natureza religiosa em seu interior. O Estado laico respeita quem professa uma fé, mas também o direito dos cidadãos à descrença religiosa. A liberdade de crença e a liberdade de consciência compreendem, além da liberdade de escolha da religião, de aderir a qualquer crença religiosa, de mudar de religião, de não aderir a religião alguma, bem como a liberdade de descrença, de ser ateu e de exprimir o agnosticismo.
A diversidade de religiões e seitas é a maior expressão da liberdade re­ligiosa e está em conformidade com o conceito de Estado laico, ou seja, no interior deste podem coexistir adeptos de várias religiões, exercendo seu direito de crença e se relacionando uns com os outros de forma pacífica e respeitosa. A liberdade religiosa, consistente na liberdade de consciência, de crença, de culto e de organização religiosa, tornou-se direito fundamental imodificável em nosso país. O Estado passou a não intervir em assuntos religiosos, todavia garantiu a igualdade das associações religiosas perante a lei. É o respeito e o princípio da não-intromissão do Estado na religião e vice-versa.
Com efeito, não obstante as garantias constitucionais para efetivar a liberdade religiosa, bem como a igualdade religiosa, é responsabilidade do Estado brasileiro estabelecer as condições de organização do espaço público de modo a não privilegiar uma posição de determinada religião em relação às demais, mesmo quando seus adeptos representam numericamente ampla maioria da população do país.
A cultura brasileira, apesar de precipuamente formada por cristãos, não é exclusivamente formada pelo cristianismo. Sendo assim, impor práticas ou elementos cristãos, ou ainda, próprios do catolicismo, em espaços do poder      público constitui uma violação dos direitos da minoria que não partilha da mesma crença religiosa.
Em minha experiência pessoal na política, já vivenciei inúmeras situações em nosso estado que me incomodaram, na medida em que manifestações de uma determinada religião eram desenvolvidas em espaços públicos, mantidos com recursos dos impostos arrecadados por todos os cidadãos, mesmo eu sendo praticante daquela religião. Ficava incomodado pela afronta à legislação, mas também por estar ao lado de pessoas que não se sentiam representadas naqueles atos ou símbolos religiosos. Passo a citar algumas destas situações.
Quando exercia o mandato de vereador de Campo Grande, considerava inoportuno e inadequado que cada sessão legislativa se iniciasse com a leitura de um trecho da bíblia e do alcorão, já que havia um vereador muçulmano na casa. A prática foi incorporada como norma no regimento interno da Câmara. Além de desagradar quem não era cristão e nem islâmico, acabava por ser uma mera formalidade, pois normalmente só prestava atenção na leitura o vereador que a proclamava. Os demais, ou conversavam entre si ou se ocupavam com as matérias em discussão na pauta do dia.
Como secretário de estado de educação, não foi uma ou duas vezes que presenciei em escolas públicas estaduais símbolos religiosos e frases bíblicas estampadas nas paredes; recitação da oração do ‘Pai Nosso’ no pátio com toda a comunidade escolar reunida; evento com os alunos para abertura do ‘mês da bíblia’, em setembro, com altar adornado para a exposição do livro sagrado para os cristãos e cânticos católicos; festival estudantil de música gospel. Todas essas situações foram realizadas fora do contexto das aulas de ensino religioso, que é de matrícula facultativa, e direcionadas a totalidade dos alunos e funcionários da escola.
Durante o exercício dos mandatos como deputado estadual, posso citar fatos que, no meu entendimento, ferem o princípio constitucional da laicidade do Estado. A presença do crucifixo, símbolo de grande significação para os católicos, afixado no plenário e em outros ambientes da Assembleia Legislativa; o início das sessões e reuniões de comissões com a palavra do presidente ‘invocando a proteção de Deus’. Além disso, houve a prática da celebração de missas e cultos evangélicos nos espaços daquela Casa de Leis, transmitidas ao vivo pela TV Assembleia, que, mesmo direcionados aos adeptos de determinada religião, retiravam os funcionários de suas funções e chegavam a interferir no horário das sessões legislativas. Mas o que mais me causou constrangimento como parlamentar, foi a interrupção de uma sessão ordinária da Assembleia para receber a imagem peregrina de Nossa Senhora Aparecida, entronizada no plenário por um padre católico, que ocupou o espaço para proferir sua homilia e entoar cânticos em louvor à santa. Muitos deputados evangélicos se retiraram do recinto, reclamando, com toda razão. Penso que as expressões de fé, as celebrações de cultos e outros liturgias devam acontecer nos espaços das comunidades religiosas e igrejas, dentre os adeptos da mesma denominação ou em atos ecumênicos promovidos por diferentes denominações. 
A argumentação de que o Estado pode usar um símbolo religioso como símbolo do conjunto da nação ou empregar as práticas de uma determinada religião, utilizando-se como justificativa um fundamento cultural para a exclusão das expressões de outros grupos étnico-religiosos, é justificativa que desconsidera e desrespeita a pluralidade da cultura brasileira. A religião deve ser entendida como manifestação de caráter privado, baseada em convicções de foro íntimo de cada pessoa e não pode ser imposta para o conjunto de uma sociedade marcada pela diversidade de pensamento e de crença.
Penso haver ainda muita confusão e muito abuso neste assunto da relação entre religião e Estado. A diversidade religiosa em nosso país é algo que considero uma riqueza cultural e o diálogo respeitoso entre as religiões deve ser incentivado, assim como a tolerância e o espírito de fraternidade entre todos, inclusive com os que não professam qualquer crença. O Brasil, inicialmente colonizado por cristãos, é um país que reconhece hoje as religiões tradicionais dos mais de 200 povos indígenas que vivem em seu território e recebeu migrantes de várias partes do mundo, que aqui aportaram para ajudar a construir essa imensa nação, trazendo outras convicções religiosas, a começar pelos povos africanos e, depois, pelos europeus e asiáticos, além dos coirmãos latino-americanos. 
Quando a Constituição reconhece no Art. 19, I que o Estado pode estabelecer relação com as religiões ou igrejas no sentido da colaboração de interesse público, podemos assinalar as inúmeras iniciativas de entidades religiosas, subvencionadas com recursos do poder público, que prestam inestimáveis e relevantes serviços voltados a atender amplos setores da população onde o Estado se faz ausente ou pouco eficiente nas políticas públicas. São ações e projetos que garantem assistência aos hipossuficientes, crianças e adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, dependentes químicos e doentes, muitas vezes, garantindo-lhes meios para sua emancipação. Porém, já que mantidos integral ou parcialmente com recursos públicos, não podem restringir o atendimento aos adeptos da religião ou igreja a qual estão vinculados, mas devem prestar seus serviços a todos quantos queiram ou necessitem.
Salientamos, por fim, que, conforme nosso entendimento, num Estado laico a liberdade religiosa e a igualdade religiosa podem servir ao desenvolvimento de uma sociedade com mais equidade e com relações de solidariedade e fraternidade entre seus cidadãos, com respeito aos direitos fundamentais das pessoas, na medida em que as religiões e igrejas difundem em suas crenças valores que promovem a convivência harmoniosa e a dignidade de todas as pessoas. Porém, não é lícito que práticas ou símbolos de determinada religião ocupem os espaços públicos e sejam apresentados ou impostos como se representassem o sentimento do conjunto dos cidadãos. Sejam os direitos de todos garantidos e respeitados, religiosos e não-religiosos e, o Estado, o guardião dos mesmos, em nome da liberdade e da igualdade. 

* Pedro Kemp, professor universitário, graduado em filosofia, bacharel e licenciado em psicologia, especialista em psicologia social, mestre em educação, é deputado estadual (PT/MS).