Por
recomendação do Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul, as escolas
da rede municipal de Campo Grande suspenderam a oração do ‘Pai Nosso’, que
normalmente era feita no início das aulas. O posicionamento do órgão estadual
se deu após a reclamação de um pai de aluno. Em nota, a Secretaria Municipal de
Educação explicou que recebeu a orientação da Promotoria dos Direitos Humanos,
sob pena de ajuizamento de ação civil pública, para que a oração não seja
feita, assim como nenhuma outra manifestação de cunho religioso.
Este fato
ocorrido em Campo Grande suscitou posicionamentos na sociedade contra e a favor
da orientação do MPE/MS. Contudo, é bom lembrar que esta não é uma situação
inédita, na medida em que o Ministério Público e o Judiciário no país já foram
instados a se pronunciar diversas vezes sobre questões relativas a crenças e
práticas religiosas num Estado que se define como laico, tais como, ensino
religioso nas escolas públicas; presença de símbolos religiosos em repartições
públicas; direito de pessoas de determinada denominação religiosa a não se
submeter a provas dos concursos públicos e do ENEM em dia de sábado;
assistência religiosa a encarcerados; leitura da bíblia em instituições
públicas e nos parlamentos; placas feitas com dinheiro público nas entradas de
algumas cidades com os dizeres ‘Aqui Jesus Cristo é o Senhor’; dentre outras
situações. Neste sentido, consideramos oportuna a reflexão sobre a laicidade do
Estado brasileiro e a liberdade de religião.
O Brasil começou
a se definir como um Estado laico a partir da publicação do Decreto nº 119-A,
de 07/01/1890, de autoria de Ruy Barbosa. Até esta data, havia liberdade de
crença no país, porém não havia liberdade de culto. A religião oficial era a
Católica e os cultos de outras religiões diferentes só eram tolerados no
ambiente doméstico. Com o mencionado decreto, houve a separação entre Estado e
Igreja e ampliou-se o direito à liberdade religiosa no Brasil republicano.
De acordo
com seu ordenamento jurídico, nosso país reafirma e aprofunda a concepção de
Estado secular, sendo que na Constituição e em outras legislações
infraconstitucionais estão previstos a liberdade de crença religiosa aos
cidadãos, além da proteção e do respeito às diversas manifestações
religiosas. Vejamos:
No artigo 5º da Constituição Brasileira
(1988) está escrito:
“VI - é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias;”
“VIII – ninguém será privado de direitos
por motivo de crença religiosa (...), salvo se as invocar para eximir-se de
obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa,
fixada em lei.”
Estabeleceu, ainda, em
seu artigo 19, I o seguinte:
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,
embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes
relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração
de interesse público.”
Ao
examinarmos as constituições brasileiras do período republicano, observaremos
um gradual acolhimento do fenômeno religioso. A atual Carta Magna faz referência
à Deus no preâmbulo, apesar de não se constituir como função normativa e
expressar uma posição ideológica dos constituintes; admite a justificação de
consciência ao brasileiro que se recuse a cumprir obrigação imposta a todos por
motivo de crença, somente estabelecendo a perda de direitos políticos aos que
negarem cumprir obrigação alternativa (art. 5°, VIII); assegura a prestação de
assistência religiosa aos que cumprem penas em presídios (art. 5°, VII); admite
relação entre Estado e as religiões quando para colaboração de interesse
público (art. 19, I); estabelece imunidade tributária quanto aos impostos
incidentes sobre patrimônio, rendas e serviços de entidades religiosas (art.
150, §1°); prevê o ensino religioso, de matrícula facultativa, como parte do
conteúdo mínimo em escolas públicas de ensino fundamental, (art. 210, §1°) e;
atribui efeito civil ao casamento religioso (art. 226, §2°).
Contudo, o
Estado brasileiro, quando se afirma como laico ou secular, baseia-se no
conceito de secularismo, onde o poder estatal é oficialmente neutro ou
imparcial em relação às questões religiosas. O princípio da laicidade pressupõe
que o Estado não possui uma religião oficial, que não intervém nas diversas
religiões em atividade no seu território e nem obstaculariza o funcionamento de
qualquer organização religiosa, além do que, implica também que nenhuma
religião, por sua vez, possa intervir nas ações, normas e estruturas do Estado.
Um Estado
laico visa à defesa dos direitos fundamentais do indivíduo, considera todos os
seus cidadãos igualmente, independentemente de professar alguma religião ou
não, e não deve dar preferência aos adeptos de determinada religião. As ações,
políticas públicas e legislações não devem privilegiar nenhuma denominação
religiosa, mas seguir o princípio do interesse público numa sociedade marcada
pela pluralidade étnica, multiculturalidade e diversidade de pensamento e
crença.
O Estado
secular é aquele que dá garantias a todos os seus cidadãos de professar
livremente uma religião ou seguir uma determinada corrente filosófica, coibindo
a discriminação e o constrangimento de crentes e não-crentes ou a imposição de
uma fé religiosa a quem quer que seja. Deve também impedir que alguma religião
exerça controle ou interfira em questões políticas que possam ferir o direito
daqueles cidadãos que não comungam com seus preceitos. Os dogmas de uma
determinada fé religiosa não podem determinar a definição das políticas e
normas que são estendidas a todas as pessoas em um Estado laico. Sendo assim, as
concepções morais religiosas, mesmo que aceitas por uma maioria de cidadãos,
não podem guiar as decisões de Estado, devendo, portanto, se limitar às esferas
privadas. As convicções e práticas espirituais são decisões de foro íntimo do
ser humano, que não pode ser discriminado nem forçado a declinar ou a revelar
publicamente sua orientação religiosa.
O conceito
de Estado laico, no entanto, não pode ser confundido com o de Estado ateu, uma
vez que este não aceita a ideia da existência de Deus e proíbe qualquer prática
de natureza religiosa em seu interior. O Estado laico respeita quem professa
uma fé, mas também o direito dos cidadãos à descrença religiosa. A liberdade de
crença e a liberdade de consciência compreendem, além da liberdade de escolha
da religião, de aderir a qualquer crença religiosa, de mudar de religião, de
não aderir a religião alguma, bem como a liberdade de descrença, de ser ateu e
de exprimir o agnosticismo.
A
diversidade de religiões e seitas é a maior expressão da liberdade religiosa e
está em conformidade com o conceito de Estado laico, ou seja, no interior deste
podem coexistir adeptos de várias religiões, exercendo seu direito de crença e
se relacionando uns com os outros de forma pacífica e respeitosa. A liberdade
religiosa, consistente na liberdade de consciência, de crença, de culto e de
organização religiosa, tornou-se direito fundamental imodificável em nosso
país. O Estado passou a não intervir em assuntos religiosos, todavia garantiu a
igualdade das associações religiosas perante a lei. É o respeito e o princípio
da não-intromissão do Estado na religião e vice-versa.
Com efeito,
não obstante as garantias constitucionais para efetivar a liberdade religiosa,
bem como a igualdade religiosa, é responsabilidade do Estado brasileiro
estabelecer as condições de organização do espaço público de modo a não
privilegiar uma posição de determinada religião em relação às demais, mesmo
quando seus adeptos representam numericamente ampla maioria da população do
país.
A cultura
brasileira, apesar de precipuamente formada por cristãos, não é exclusivamente
formada pelo cristianismo. Sendo assim, impor práticas ou elementos cristãos,
ou ainda, próprios do catolicismo, em espaços do poder público constitui uma violação dos
direitos da minoria que não partilha da mesma crença religiosa.
Em minha
experiência pessoal na política, já vivenciei inúmeras situações em nosso
estado que me incomodaram, na medida em que manifestações de uma determinada
religião eram desenvolvidas em espaços públicos, mantidos com recursos dos
impostos arrecadados por todos os cidadãos, mesmo eu sendo praticante daquela
religião. Ficava incomodado pela afronta à legislação, mas também por estar ao
lado de pessoas que não se sentiam representadas naqueles atos ou símbolos
religiosos. Passo a citar algumas destas situações.
Quando
exercia o mandato de vereador de Campo Grande, considerava inoportuno e
inadequado que cada sessão legislativa se iniciasse com a leitura de um trecho
da bíblia e do alcorão, já que havia um vereador muçulmano na casa. A prática
foi incorporada como norma no regimento interno da Câmara. Além de desagradar
quem não era cristão e nem islâmico, acabava por ser uma mera formalidade, pois
normalmente só prestava atenção na leitura o vereador que a proclamava. Os
demais, ou conversavam entre si ou se ocupavam com as matérias em discussão na
pauta do dia.
Como
secretário de estado de educação, não foi uma ou duas vezes que presenciei em
escolas públicas estaduais símbolos religiosos e frases bíblicas estampadas nas
paredes; recitação da oração do ‘Pai Nosso’ no pátio com toda a comunidade
escolar reunida; evento com os alunos para abertura do ‘mês da bíblia’, em
setembro, com altar adornado para a exposição do livro sagrado para os cristãos
e cânticos católicos; festival estudantil de música gospel. Todas essas
situações foram realizadas fora do contexto das aulas de ensino religioso, que
é de matrícula facultativa, e direcionadas a totalidade dos alunos e
funcionários da escola.
Durante o
exercício dos mandatos como deputado estadual, posso citar fatos que, no meu
entendimento, ferem o princípio constitucional da laicidade do Estado. A
presença do crucifixo, símbolo de grande significação para os católicos,
afixado no plenário e em outros ambientes da Assembleia Legislativa; o início
das sessões e reuniões de comissões com a palavra do presidente ‘invocando a
proteção de Deus’. Além disso, houve a prática da celebração de missas e cultos
evangélicos nos espaços daquela Casa de Leis, transmitidas ao vivo pela TV
Assembleia, que, mesmo direcionados aos adeptos de determinada religião,
retiravam os funcionários de suas funções e chegavam a interferir no horário
das sessões legislativas. Mas o que mais me causou constrangimento como
parlamentar, foi a interrupção de uma sessão ordinária da Assembleia para
receber a imagem peregrina de Nossa Senhora Aparecida, entronizada no plenário
por um padre católico, que ocupou o espaço para proferir sua homilia e entoar
cânticos em louvor à santa. Muitos deputados evangélicos se retiraram do
recinto, reclamando, com toda razão. Penso que as expressões de fé, as
celebrações de cultos e outros liturgias devam acontecer nos espaços das
comunidades religiosas e igrejas, dentre os adeptos da mesma denominação ou em
atos ecumênicos promovidos por diferentes denominações.
A
argumentação de que o Estado pode usar um símbolo religioso como símbolo do
conjunto da nação ou empregar as práticas de uma determinada religião,
utilizando-se como justificativa um fundamento cultural para a exclusão das
expressões de outros grupos étnico-religiosos, é justificativa que desconsidera
e desrespeita a pluralidade da cultura brasileira. A religião deve ser
entendida como manifestação de caráter privado, baseada em convicções de foro
íntimo de cada pessoa e não pode ser imposta para o conjunto de uma sociedade
marcada pela diversidade de pensamento e de crença.
Penso haver
ainda muita confusão e muito abuso neste assunto da relação entre religião e
Estado. A diversidade religiosa em nosso país é algo que considero uma riqueza
cultural e o diálogo respeitoso entre as religiões deve ser incentivado, assim
como a tolerância e o espírito de fraternidade entre todos, inclusive com os
que não professam qualquer crença. O Brasil, inicialmente colonizado por
cristãos, é um país que reconhece hoje as religiões tradicionais dos mais de
200 povos indígenas que vivem em seu território e recebeu migrantes de várias
partes do mundo, que aqui aportaram para ajudar a construir essa imensa nação,
trazendo outras convicções religiosas, a começar pelos povos africanos e,
depois, pelos europeus e asiáticos, além dos coirmãos latino-americanos.
Quando a
Constituição reconhece no Art. 19, I que o Estado pode estabelecer relação com
as religiões ou igrejas no sentido da colaboração de interesse público, podemos
assinalar as inúmeras iniciativas de entidades religiosas, subvencionadas com
recursos do poder público, que prestam inestimáveis e relevantes serviços
voltados a atender amplos setores da população onde o Estado se faz ausente ou
pouco eficiente nas políticas públicas. São ações e projetos que garantem
assistência aos hipossuficientes, crianças e adolescentes, idosos e pessoas com
deficiência, dependentes químicos e doentes, muitas vezes, garantindo-lhes
meios para sua emancipação. Porém, já que mantidos integral ou parcialmente com
recursos públicos, não podem restringir o atendimento aos adeptos da religião
ou igreja a qual estão vinculados, mas devem prestar seus serviços a todos
quantos queiram ou necessitem.
Salientamos,
por fim, que, conforme nosso entendimento, num Estado laico a liberdade
religiosa e a igualdade religiosa podem servir ao desenvolvimento de uma
sociedade com mais equidade e com relações de solidariedade e fraternidade
entre seus cidadãos, com respeito aos direitos fundamentais das pessoas, na
medida em que as religiões e igrejas difundem em suas crenças valores que
promovem a convivência harmoniosa e a dignidade de todas as pessoas. Porém, não
é lícito que práticas ou símbolos de determinada religião ocupem os espaços
públicos e sejam apresentados ou impostos como se representassem o sentimento
do conjunto dos cidadãos. Sejam os direitos de todos garantidos e respeitados,
religiosos e não-religiosos e, o Estado, o guardião dos mesmos, em nome da liberdade
e da igualdade.
* Pedro
Kemp, professor universitário, graduado em filosofia, bacharel e licenciado em
psicologia, especialista em psicologia social, mestre em educação, é deputado
estadual (PT/MS).
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