A
grave crise política que estamos vivendo hoje no Brasil não tem a ver apenas
com a disputa pelo poder central da República. Não se trata simplesmente de
tirar um presidente ou um partido que está à frente do governo para dar lugar a
outro. Trata-se, isto sim, de uma disputa de projetos políticos, com
orientações ideológicas antagônicas.
Enganam-se
aqueles que afirmam que a luta de classes não existe mais e que isso é mero
discurso esquerdista para causar divisões e discórdias na sociedade. A crise
política em nosso país é o mais recente e contundente exemplo de que ela segue
vigorosa e que sempre encontra muitas formas de dissimulação. O que está em
curso no Congresso Nacional é a mais acabada ofensiva dos partidos de direita
para derrotar um governo e um partido que representam o projeto de combate às
desigualdades sociais, de maior igualdade de direitos e oportunidades para os
trabalhadores e empobrecidos e de um programa de políticas sociais jamais visto
na história desse país.
O
golpe político articulado pela oposição e os ex-governistas quer trazer de
volta o projeto neoliberal do Estado mínimo, da desregulamentação da economia
para a garantia da maior liberalidade do mercado, da supressão das políticas
sociais e dos direitos dos trabalhadores, do incentivo ao capital financeiro e
rentista. É o retorno da política dos privilégios para as elites econômicas, para
o grande empresariado e para o agronegócio. É o projeto que, com certeza, vai reposicionar
o Brasil no ranking dos países com maior desigualdade social e no Mapa da Fome
da ONU, como estivemos há alguns anos.
Estamos
diante de um processo conduzido pelos representantes de uma aliança jurídico-parlamentar-midiática,
que absolutamente tiveram seus interesses contrariados nas gestões petistas,
mas que nunca se conformaram com um governo compromissado com as causas
populares. Não lhes faltaram apoio e investimentos por parte do governo na agricultura,
na indústria, no setor da infraestrutura e do comércio com o aumento do
consumo. Mas, mesmo assim, não toleravam as políticas de distribuição de renda,
de recuperação do salário mínimo, de combate à fome, de acesso às
universidades, das ações afirmativas, de acesso à moradia, de garantia de
direitos às minorias. Mal continham a irritação e o menosprezo diante dos novos
protagonistas em defesa de sua cidadania: mulheres, negros, índios, LGBT’s.
Se
as elites estavam silentes numa cojuntura favorável aos seus negócios, seu
humor mudou e seu ímpeto golpista saiu do armário quando a crise econômica se
abateu sobre o país e começou a contrariar seus interesses. Não podiam mais
aceitar um Estado que dispendia parte considerável do seu orçamento com
políticas sociais. Em tempos de crise, eles sabem bem qual o remédio a ser
adotado: diminuição do Estado e cortes de gastos. Os maiores atingidos? Os
pobres e assalariados, os que não têm como sonegar impostos, pois estes são
descontados em seus salários no holerite. Mas tudo para preservar seus
interesses. Tudo para acalmar o santo mercado e preservar os rendimentos nas
aplicações financeiras e submeter o Estado aos interesses privados.
As
conquistas sociais dos últimos anos, nos governos da esquerda, são inegáveis.
Milhões de pessoas saíram da linha da pobreza e passaram a consumir, a comer
melhor, a estudar e a ter onde morar. Os pobres subiram um degrau na sociedade,
foram aos shoppings centers, lotaram supermercados e lojas, compraram carros e
passaram a viajar de avião. As empregadas domésticas conquistaram os mesmos
direitos que os demais trabalhadores. Os filhos dos empresários tiveram que
dividir espaços nas universidades com os filhos dos trabalhadores, com os
pobres, com afrodescendentes e indígenas. Segmentos antes marginalizados ou
invisíveis cresceram em organização e passaram a reclamar sua cidadania. Tudo
para aumentar a irritação das elites.
Mas
a crise econômica bateu às nossas portas. Para as elites, o capital não pode
perder e o Estado tem que estar a seu serviço. A acumulação deve prosseguir, os
lucros não podem cair. Bem, aí a paciência se esgotou. Era preciso mudar os
rumos do governo. Era preciso retomar o projeto anterior às últimas quatro
derrotas eleitorais da direita. O que fazer, então, para derrotar o governo e
seu partido? Criminalizá-los.
Forma-se
então a aliança jurídico-parlamentar-midiática para a ofensiva de carimbar o PT
como o partido mais corrupto da história do Brasil e o governo como conivente
com a corrupção e responsável pela recessão econômica. Ao judiciário, à Polícia
Federal e ao Ministério Público couberam as investigações seletivas e ações
espetaculares para condenar os petistas. À mídia, a formação da opinião pública
de que o PT estava na raiz de todos os males da nação. Aos parlamentares, a
construção do crime de responsabilidade para cassar a presidenta.
O
processo do impeachment começou a ser pensado desde os primeiros momentos que
se seguiram à reeleição de Dilma Rousseff. A oposição questionou os resultados,
insinuou fraude nas urnas eletrônicas, tentou impedir a posse da vencedora e fez
de tudo para que a mesma não tivesse paz para governar. As oposições derrotadas
nas urnas trataram de desestabilizar o governo, minando sua base no Congresso e
votando as pautas-bomba para elevar gastos e dificultar o equilíbrio das
finanças públicas.
A
batalha foi armada. A confluência de interesses uniu oposição e ex-governistas
para tomar de assalto o governo. Discurso pronto: a presidente cometeu crime de
responsabilidade ao praticar as chamadas pedaladas fiscais e editar decretos de
suplementação orçamentária sem autorização legislativa. Mas esses atos não
foram cometidos por outros presidentes? Não eram crimes e agora o são? Sim,
agora, por conveniência, o são. Isso é o de menos.
Pois
então, se a esquerda não foi derrotada nas urnas, só restou o golpe
institucional, revestido de legalidade, afiançado pela Suprema Corte,
transmitido ao vivo pelas redes de televisão e assistido pelas massas
acreditando que o fim da corrupção chegou e uma nova era para o país se
inaugurou. Mas, espera um pouco. Quem está assumindo a presidência mesmo? Quem
são seus ministros? Nova era? Fim da corrupção?
A
luta de classes está viva e vigorosa. A democracia foi sacrificada e o projeto
das elites está de volta. A história prossegue.
E
para nós que ousamos um dia sonhar com um outro país possível, de justiça
social e solidariedade, com crianças sorrindo, mulheres empoderadas, negros e
índios respeitados, trabalhadores valorizados, LGBT’s tratados como gente, e lutamos
muito por isso, não nos resta outro caminho a não ser o da luta organizada, da
boa política da utopia desejada.
Termino
com Immanuel Kant: “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade.
Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por
outro lado, a coisa que se encontra acima de todo preço, e por isso não admite
qualquer equivalência, compreende uma dignidade”.
Pedro
Kemp (12/05/2016)
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