No segundo semestre de 2022, fui convidado por um professor de sociologia para palestrar numa escola da rede estadual de ensino por ocasião do Dia Nacional da Consciência Negra. A ideia que ensejou o convite à minha pessoa era a de proporcionar um debate com os alunos sobre a lei de minha autoria que implantou as cotas raciais na Universidade Estadual e discutir a eficácia das ações afirmativas nas políticas públicas sociais. Fiquei muito lisonjeado com o convite, até porque esta é uma das coisas que mais me dão prazer: conversar com estudantes sobre temas da atualidade e de assuntos que têm a ver com suas vivências e interesses. Ao adentrar no estabelecimento de ensino, encontrei os alunos de todas as turmas enfileirados no pátio e militares uniformizados circulando ao redor deles. Um dos militares deu uma ordem com a voz em tom muito alto, e os alunos seguiram para as salas de aula numa marcha uniforme e em absoluto silêncio. Foi aí que me dei conta de que estava numa escola cívico-militar.
Tendo chegado na sala da turma com a qual eu
iria conversar, fui levado até a mesa do professor e convidado a me sentar. Uma
aluna, que estava em pé, ao meu lado, creio que a monitora dos colegas, deu um forte
grito: “posição de sentido”, e todos se levantaram. Em seguida, falou uma frase
de forma mecânica e com voz grave, ainda em tom alto e muito rápido, que quase
não consegui entender. Sei que tinha alguma coisa a ver com minha palestra e
com normas de respeito. Ao terminar, gritou: “entendido, turma?”. Ao que todos
responderam, gritando: “sim”, batendo continência. “Descansar”, ordenou a
monitora. E todos se sentaram. Em seguida, fui autorizado a proferir minha
palestra. Eu, que sempre visitava escolas públicas para participar de
comemorações, eventos e debater com os alunos, confesso que fiquei bastante
constrangido, envergonhado mesmo, com a cena que acabara de assistir. Comecei a
falar sobre o tema da minha palestra, mas um pensamento me atormentava o tempo
todo: será este o modelo de educação pública que teremos no Brasil de ora em
diante?
No último dia 12 de julho, quase oito meses
após aquela minha palestra, o Governo
Federal anunciou o encerramento do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares
(PECIM) no país, criado por decreto em 2019 durante a gestão Bolsonaro.
O
PECIM é um programa que amplia a desigualdade salarial na escola e privilegia os
membros das forças de segurança que atuam nas atividades de apoio e gestão
escolar. Ao invés de investir na formação e valorização do magistério,
transfere recursos para profissionais que não pertencem à área da educação. Cada
militar vinculado ao programa recebe mensalmente, de R$ 2.700,00 até R$
9.152,00, dependendo da patente, além dos valores que já percebe como aposentado.
O adicional mais elevado é maior, em média, que o valor do piso do magistério
nacional e, somado aos seus vencimentos de militar, é bem maior que o percebido
pelos diretores escolares. Em três anos de existência do PECIM, o orçamento
disponibilizado custou aproximadamente R$ 98,3 milhões aos cofres públicos. Atualmente,
somente das Forças Armadas, sem contar os policiais e bombeiros militares dos
estados, 856 militares atuam no programa. Os investimentos significativos,
extraídos do orçamento da Educação para manter militares reformados nas escolas
públicas de ensino fundamental e médio em atividades de assessoria e suporte destoam
da escassez de recursos que as redes de ensino investem para o pagamento da
folha salarial de seus educadores. Os militares que atuam nas escolas cívico-militares
não são considerados, para todos os fins, como profissionais da educação básica
e, sendo assim, os gastos com militares inativos não podem ser computados como
despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino, previstas na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, caracterizando, portanto, desvio dos recursos
vinculados estritamente à educação.
A
justificativa para a realização do programa mostrou-se equivocada, ao pretender
que o militarismo seria a solução para o enfrentamento das questões de
indisciplina e violência nas instituições de ensino, além de outras advindas da
vulnerabilidade social nas localidades onde as escolas públicas estão inseridas,
e que suas características poderiam se tornar o tipo de atendimento universal
previsto para a educação básica regular. Não há dados públicos que comprovem a
eficácia do programa nem informações sobre o desempenho dos alunos que
frequentam essa forma de ensino. Das 100 melhores escolas públicas do Brasil,
nenhuma é militar. O programa, que pretendia ser um modelo para o setor
educacional brasileiro, foi alvo de elogios e críticas, além de denúncias de
abusos cometidos por militares, de assédio moral e sexual de alunos,
interferências nos programas e planejamentos escolares. Mas, mesmo que
houvessem dados positivos, a questão não se resume a resultados. A questão é bem
outra. É de concepção e de modelo de educação que se pretende, para ser
instrumento de formação para a cidadania e de construção de um país mais justo socialmente
e democrático. O ponto central é que tipo cidadãos queremos formar para qual
modelo de sociedade? Cidadãos críticos, responsáveis, cientes de seus deveres e
direitos, participativos ou cidadãos bem adestrados na obediência a regras e
comandos e que saibam bater continência a autoridades inquestionáveis?
O
PECIM foi, antes de tudo, um modelo excludente, pois não abrangeu todas as
escolas, e de custo elevado aos cofres públicos. Teve
pouca adesão de gestores públicos locais, sendo que no auge do programa
aproximadamente 200 escolas das 138 mil adotaram o método cívico-militar, ou
seja, somente 0,28%. Nenhuma escola privada do Brasil aderiu ao programa
e, no início deste ano, 109 escolas públicas abandonaram o mesmo. Pesquisa do Cesop/Unicamp revelou que 72% dos brasileiros confiam
mais em professores do que em militares para atuarem nas escolas.
O
Ministério da Educação tem por dever constitucional garantir a educação civil, pública,
gratuita, democrática, de qualidade social e igual para todo e qualquer filho
de brasileiro ou brasileira. As escolas cívico-militares se transformaram em
estratégia do governo do ex-capitão do Exército para uso doutrinário e dentro
de um contexto ideológico autoritário. O entendimento que temos é que os graves
e complexos problemas de vulnerabilidade social, indisciplina e conflitos no
interior das escolas públicas devem ser resolvidos com mais investimentos nos
recursos instrucionais, valorização dos educadores (professores e
administrativos da educação) e com aplicação prática dos princípios e
estratégias pedagógico-educacionais. Os problemas das escolas públicas são mais
relacionados à falta de investimento em infraestrutura e à desvalorização dos
profissionais da educação do que à indisciplina ou a uma pretensa falta de
patriotismo ou civismo por parte dos estudantes.
A
escola não deve abrir mão das suas responsabilidades e nem transferir suas
funções para outras instituições, assim como não cabe às Forças Armadas convocar
professores para suas atividades de cunho militar. O problema da indisciplina
na escola está muito mais relacionado com a incapacidade que as famílias do
nosso tempo estão enfrentando para lidar com as pressões e influências da
sociedade via meios de comunicação, redes sociais e, principalmente no mundo
virtual da internet, que seduzem, transmitem informações e determinam comportamentos
e modos de vida. Estes são muito mais fortes e poderosos do que os pais no seu
esforço de educar e transmitir valores. Pais e mães não tem conseguido
estabelecer limites no comportamento dos seus filhos e esperam que as escolas o
façam, assumindo suas responsabilidades.
Outras
questões que interferem de forma negativa no ambiente escolar devem ser
analisadas de forma mais abrangente e com base científica, já que a escola
reflete os problemas de uma sociedade em crise. Uso de drogas, depressão juvenil,
transtornos de ansiedade, gravidez precoce, insegurança alimentar não são problemas
gerados na escola ou pela escola, mas no contexto familiar e da sociedade
excludente e desigual em que vivemos, e suas consequências devem ser abordadas
pelas instituições de ensino como realidades vivenciadas por seus alunos,
merecendo os encaminhamentos mais acertados à luz das teorias educacionais, com
seminários, palestras, projetos, rodas de conversa, justiça restaurativa,
combinados entre diretores-alunos-professores, busca de apoio profissional em
psicologia e saúde quando necessários, num ambiente acolhedor e de diálogo.
“Não é possível refazer este país, democratizá-lo,
humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente,
ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação
sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”,
ensinava Paulo Freire (Pedagogia da Indignação). A escola não pode tudo,
mas pode fazer muito pelos adolescentes e jovens, muitas vezes em crise e sem
perspectivas de futuro, para que voltem a sonhar e desejar um espaço de
realização pessoal e profissional na sociedade. Querer transferir para os
militares as funções dos educadores é o mesmo que admitir a incompetência destes
últimos no cumprimento do seu mister. Disciplina, organização e respeito são
essenciais para que a educação aconteça e, essas questões, a escola sabe muito
bem como fazer, na qualidade de agência especializada na transmissão e
construção de conhecimentos e na capacidade de leitura da realidade onde vivem
seus alunos.
Excelente e elucidativo seu texto Deputado KEMP. Nunca concordei com o processo de admissão à escola militar por avaliação que seleciona, classifica e exclui, devolvendo para a sociedade os educandos taxados como incapazes, Se a função primordial da escola é ensinar o que justifica excluir os educandos que chegam em estágios diferentes de aprendizagem??? NAO CONCORDO COM A PERMANÊNCIA E EXPANSÅO DAS ESCOLAS CÍVICO MILITARES FORA DOS PARÁMETROS DA LEI NACIONAL DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO.
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