Mais um Sete de
Setembro se realizou por todo o país, com desfiles de militares, alunos de escolas
públicas e privadas, fanfarras, bandas, tanques de guerra, carros do Exército e
da Polícia Militar. Em algumas capitais, até a Esquadrilha da Fumaça e sobrevoo
de aviões e helicópteros. Milhares de pessoas nas ruas para assistirem ao
espetáculo, enquanto outros preferem aproveitar o feriadão para ficar em casa e
fazer um churrasquinho com os amigos e, outros ainda, vão viajar para pescar ou
visitar parentes. Tudo certo!
Quando adolescente,
estudante de escola pública na minha cidade natal, também cheguei a desfilar
uniformizado, com fita verde-amarela afixada no bolso da camisa, e junto com os
colegas de classe marchávamos como se militares fossemos. Achava tudo muito
bonito, bem organizado, solenidade que, segundo nossos educadores, despertava
em nós o civismo, o amor à Pátria e o respeito aos símbolos nacionais.
Decorridos muitos anos
da minha participação nesses eventos, fui aprender que um país só pode ser
considerado verdadeiramente independente, livre, soberano e democrático quando
garante ao seu povo vida digna, não apenas a uns poucos, a uma elite
privilegiada, mas a todos e todas. O Brasil, uma nação marcada pela diversidade
étnico-racial, multicultural, de belezas naturais exuberantes, com um povo
trabalhador e determinado, sendo uma das maiores economias do mundo, ainda
concentra mais da metade da riqueza nacional nas mãos de 1% dos brasileiros,
tem 33 milhões de pessoas vivendo na insegurança alimentar, com milhões de
desempregados e subempregados, com sérios problemas de violações dos direitos
humanos e uma dívida enorme com os povos indígenas e afrodescendentes. Por esse
motivo, acredito, como muitos, que nossa verdadeira independência e soberania
ainda estão sendo conquistadas, e que não basta reverenciarmos a Bandeira Nacional,
cantarmos o Hino com devoção e andarmos com fita verde-amarela no peito para
sermos verdadeiros cidadãos brasileiros. Amar à Pátria, deve significar, antes
de tudo e acima de tudo, amor ao povo, e a todas as pessoas, especialmente os
mais vulneráveis, e desejar que nossa pátria-mãe gentil seja generosa com todos
os seus filhos e filhas.
É por esta razão que,
há 29 anos atrás, por iniciativa da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, os movimentos e pastorais sociais, além de sindicatos e organizações da
sociedade civil organizaram o Grito dos Excluídos, em contraposição ao Grito do
Ipiranga, liderado por um membro da família real portuguesa, para chamar a
atenção da sociedade brasileira para os problemas decorrentes do nosso modelo
econômico excludente, que faz do país um dos mais desiguais do mundo, e ainda,
não garante o acesso aos direitos de cidadania para uma parcela significativa
da população. É um movimento que quer dar voz a quem não consegue fazer chegar
o seu clamor aos detentores do poder responsáveis pela elaboração das políticas
públicas de garantia de direitos e de mais igualdade de oportunidades para as
pessoas.
Aqui em Campo Grande,
fui um dos primeiros coordenadores do Grito dos Excluídos, junto com a Irmã
Inês Guarnieri, secretaria executiva do Regional da CNBB, e a assistente social
da Arquidiocese, Lúcia Furtado, e sempre contávamos com a liderança e a presença
de Dom Vitório Pavanello abrindo nossa caminhada pelas ruas centrais (bons
tempos de lideranças religiosas sensíveis aos problemas do povo), logo atrás do
desfile oficial do Dia da Independência. Militantes e agentes de pastorais,
sindicalistas, donas de casa, trabalhadores e trabalhadoras, ativistas dos
direitos humanos e de movimentos de mulheres, negros, indígenas, pessoas com
deficiências, e tantos outros seguiam segurando cartazes e faixas com suas
reivindicações: reforma agrária e urbana, emprego, salário decente, moradia
digna, saúde pública de qualidade, entre tantas outras. Este ano, na sua vigésima
nona edição, o tema do Grito dos Excluídos foi “Vida em primeiro lugar. Você
tem fome e sede de que?”, pedindo políticas e mobilização nacional para
erradicar a fome do país e garantir o acesso à água de qualidade para toda a
população.
E agora, mais uma vez
estávamos nós no Sete de Setembro, concentrados na Barão do Rio Branco com a 13
de Maio, esperando o fim do desfile para iniciarmos nossa caminhada. Não éramos
um grupo muito numeroso, como em anos anteriores. Muitos sindicalistas e militantes
de gabinete parecem não acreditar mais na luta organizada do povo ou se
cansaram. Muitos políticos da esquerda e progressistas preferem esperar pelas
próximas eleições para se encontrar novamente com as pessoas nas ruas. Mas, motivados
por uma juventude aguerrida e animada, estávamos ali, prontos para portar
nossas faixas e cartazes defendendo a democracia, direitos sociais e comida na
mesa dos brasileiros e brasileiras. Umas 150 pessoas, talvez.
Caminhamos apenas uma
quadra, atrás do último caminhão dos militares, e eis que fomos surpreendidos, na
esquina da 13 com a Afonso Pena, com a rua interditada com grades metálicas, um
batalhão da Polícia Militar formando uma barreira de ponta a ponta e, logo
atrás, uma cavalaria da polícia numa verdadeira muralha. Fiquei estarrecido e,
ao mesmo tempo, indignado com a força militar que se formou para impedir nossa
passagem por mais algumas quadras. Perguntei aos policiais por que razão
estávamos sendo impedidos de realizar uma manifestação tranquila e democrática?
Não me respondiam. Só diziam que estavam cumprindo ordens. Então perguntei:
ordem de quem? Não me disseram. Pedi que chamassem o comandante para conversar.
Nada disseram. Então disse que nós passaríamos, porque estávamos exercendo
nosso direito constitucional à manifestação pacífica por direitos sociais. Argumentei,
também, que o desfile já havia terminado e que as autoridades, que eles estavam
por proteger, já não estavam mais no palanque. A seguir, seguiu-se o jogo de
empurra-empurra, que resultou numa senhora jogada ao chão. Após o tumulto, veio
finalmente a ordem, não sei de onde (talvez dos céus), para a liberação da
pista, permitindo nossa passagem.
Bom, já falei nas
redes sociais e repito aqui. Sei que os policiais militares que se portavam ali
impedindo nossa passagem estavam cumprindo ordens. A minha indignação é que não
houve um canal de diálogo. Quem ali com autoridade se colocou para negociar com
o grupo de manifestantes? E seguem outras indagações: quem deu ordens para o
Grito dos Excluídos não seguir, passando pelo palanque vazio de autoridades?
Foi o comando da Polícia Militar ou foi o governador do Estado? Por que a
proibição da manifestação seguir adiante no percurso que há 29 anos sempre
fizemos? Seria para não estragar a festa cívica? Seria por medo dos
manifestantes? Ou por ser o movimento identificado com a esquerda?
Lembrei-me que em
muitas edições do Grito dos Excluídos as autoridades que lotavam o palanque
para prestigiar o desfile permaneciam no local até terminar a passagem dos manifestantes.
Seria em respeito ao arcebispo que caminhava conosco? Acho que não. Tivemos
governantes que entendiam a lógica e a legitimidade dos movimentos sociais e
não se furtavam em ouvir as vozes das ruas. Em certa ocasião, por exemplo, tivemos
o governador Zeca ao lado do prefeito Puccinelli, arqui-inimigos na política, assistindo
à passagem do Grito até o final. Nunca nenhuma autoridade foi agredida ou
molestada.
Sabe o que é
revoltante nessa história? É saber que em anos anteriores manifestantes da
extrema direita ficaram meses acampados no canteiro central da Afonso Pena, em
frente à sede do Ministério Público Federal, fazendo suas manifestações
livremente e ninguém do Estado ou da Prefeitura providenciou a desocupação do
local. No ano passado, manifestantes a favor do ex-presidente inominável
fecharam estradas por não acatarem o resultado das eleições, e foi a maior
dificuldade para a desobstrução das vias. Um dia após o pleito eleitoral, havia
148 pontos de bloqueio em rodovias e até o dia 7 de novembro a PRF dispersou,
com muito custo, 1.040 manifestações. E os acampamentos em frente dos quartéis
do Exército? Totalmente livres para a obstrução de ruas, com acampamentos nos
canteiros, instalação de cozinhas, churrasco, algazarras. E o que estavam
reivindicando: “intervenção militar constitucional”, que não existe; ditadura
militar; anulação das eleições; fechamento do STF e do Congresso Nacional. Muitos
defendiam que era um direito de se manifestar. Ora, isso não é manifestação
democrática! É crime! Mas nenhuma ordem chegava para desocupação dos locais e
para por fim aos atos antidemocráticos. Com isso evoluímos para a tragédia da
invasão e do vandalismo nas sedes dos Poderes da República em Brasília, no dia
8 de janeiro deste ano. Houve leniência, conivência e, até mesmo, apoio por
parte de muitas autoridades políticas e dos comandos militares neste país.
Essas manifestações, sim, eram absurdas e jamais deveriam ser toleradas. Quando
se pede a ruptura democrática não se está apenas fazendo uma manifestação
política, mas se comete um crime contra o Estado Democrático de Direito.
E agora me pergunto: e
por que tantas grades, batalhões da polícia e tantos cavalos para impedir a
passagem de 150 pessoas que pediam justiça social num país tão desigual? Por
que tanta passividade e omissão com quem cometia o crime de conspiração contra
a democracia e tanta agressividade com quem pedia o fortalecimento da
democracia em nosso país?
Espero que nos
próximos anos os organizadores do desfile oficial convidem os responsáveis pelo
Grito dos Excluídos para uma conversa amigável e possam combinar a realização
dos eventos cívicos em parceria. Afinal, não queremos todos um país
verdadeiramente livre, soberano, mais justo e democrático? Não somos vândalos.
Somos cidadãos e cidadãs que desejam uma nação generosa com todos e todas.
Que suas palavras entrem na alma, coração e consciência de todos que as lerem, Deputado Kemp. Não é possível que os verdadeiros cristãos não reflitam .
ResponderExcluirMuito justa e contagiante sua indignação Deputado Kemp. Em nosso entendimento Pátria e Democracia não tem sentido sem os anseios e a voz do povo que clama por Justiça e por seus direitos constitucionais.
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