quinta-feira, 9 de junho de 2016

ESCOLA SEM PARTIDO: O QUE ESTÁ POR TRÁS?


 
Existem hoje vários projetos tramitando na Câmara dos Deputados que colocam em risco as bases da educação escolar e criminalizam a prática docente. Alguns proíbem que professores abordem com seus alunos temas relacionados à educação moral, sexual e religiosa, relegando tão somente às famílias tal responsabilidade. Outros pretendem vedar a discussão de gênero, orientação sexual e os temas transversais na educação. Mas o projeto mais emblemático é o PL 867/2015, conhecido como “Escola Sem Partido”, que já tramita também, de forma similar, em várias câmaras de vereadores e assembleias legislativas. Tal projeto, inspirado no movimento com o mesmo nome (ver www.escolasempartido.org), com o pretexto de impedir a doutrinação político-ideológica em sala de aula, procura impor limites à prática docente e dá supremacia à orientação da família sobre a educação escolar.

Considero que tais projetos retratam a conjuntura da crise pela qual estamos passando, onde cresce o pensamento conservador e reacionário, que visa combater as conquistas de direitos por parte das minorias sociais e segmentos vulnerabilizados socialmente, os quais historicamente estiveram à margem das políticas públicas. Uma vez aprovados, os professores deixam de ser educadores, no sentido mais amplo do termo, passam a ser meros repassadores de conteúdos “neutros” pré-estabelecidos e distantes do mundo real, perdendo o direito à liberdade de expressão no exercício de sua atividade profissional. Os docentes ficariam vulneráveis quanto à escolha e forma de tratar certos conteúdos, pois a qualquer momento poderiam ser denunciados, condenados à prisão ou exonerados.

O movimento Escola Sem Partido, nas palavras de um de seus representantes, o advogado Miguel Nagib, “surgiu em 2004 como reação ao fenômeno da instrumentalização do ensino para fins político-ideológicos, partidários e eleitorais” (http://www.escolasempartido.org/midia/395-entrevista-de-miguel-nagib-a-revista-profissao-mestre). Seu objetivo é combater a prática da “doutrinação” dos alunos por parte de seus professores, ou seja, impedir que estes se aproveitem da “audiência cativa” dos estudantes em sala de aula para “fazer sua cabeça” com ideias que contrariam a boa formação moral, religiosa e política dada por seus pais no interior de seus lares.

É interessante notar que o surgimento do tal movimento coincide com a chegada da esquerda ao governo federal e, por tudo que temos lido sobre seus pressupostos filosóficos, podemos afirmar que o que se deseja, na verdade, é impedir a mudança da perspectiva tradicional de análise da realidade por parte das pessoas, frear a propagação de um pensamento crítico frente a sociedade capitalista excludente e opressora e proteger o pensamento hegemônico da direita. A defesa da suposta neutralidade política da escola representa a manutenção no contexto educacional do pensamento daqueles que não querem o questionamento da sua posição social, dos seus valores e dos seus interesses. Para os representantes do movimento, ideologia na escola? Não. Perspectiva ideológica burguesa na educação? Aí sim. Sem problemas. Em sua justificativa estão defendendo as ideias próprias das famílias bem constituídas e com sólida formação moral.

O movimento Escola Sem Partido parte da mais atrasada concepção de educação, chamada por Paulo Freire de “educação bancária”, que considera o professor o sujeito do processo educativo, detentor do conhecimento, e o aluno seu objeto, que chega à escola de cabeça vazia, onde serão depositados os conteúdos para serem “sacados” depois no dia das provas. Os alunos seriam totalmente passivos nesta relação, meros receptores de conhecimentos prontos e neutros, sem qualquer capacidade de construção do saber e de formação da sua própria opinião sobre a realidade. Nesta perspectiva, o movimento quer passar a ideia de que os alunos são sempre vulneráveis, uma vez que o professor pode se aproveitar de sua autoridade na sala de aula para executar sua doutrinação política e ideológica.

Cabe-nos aqui ressaltar que a educação tradicional formou bons defensores do sistema e reprodutores do pensamento hegemônico da burguesia, mas não impediu que surgissem os questionadores da ordem estabelecida e os opositores do sistema vigente. A “educação bancária” não impediu o surgimento do pensamento divergente do pensamento dominante. E por quê? Justamente porque os educandos não são meros depositários de informações, não vão para a escola só com a formação dada pela família e nem seu aprendizado se dá sem sua participação ativa. Quando a criança sai dos limites do espaço doméstico passa a ampliar sua visão de mundo e a conhecer outras opiniões e outras formas de se relacionar com a realidade, diferentes daquelas de sua família. Além do mais, recebe em sua formação uma forte influência dos valores transmitidos subliminarmente pelos meios de comunicação de massa, que muitas vezes determinam mais decisivamente o seu pensamento do que seus pais e professores. Interessante notar que os membros do Escola Sem Partido não questionam essa “doutrinação” da mídia.

A educação numa sociedade de classes nunca foi e nunca será neutra. Nenhum professor é politicamente neutro e seus alunos tampouco o serão. A escola, numa sociedade que se deseja democrática, deve ser o espaço do exercício do pensamento crítico e da formação para a cidadania. Deve oferecer aos estudantes instrumentos de análise dos temas da realidade, considerando a diversidade e a pluralidade cultural, a fim de que os mesmos conquistem a autonomia no pensar e formem sua opinião, de forma embasada e crítica. Isso só é possível num ambiente em que se implante a prática do questionamento e do respeito às diferenças. Impedir o debate na escola de assuntos pertinentes ao mundo real das pessoas vai tão somente transferi-los para outros espaços da convivência social do aluno. Seria uma tentativa frustrada de relegá-lo a viver numa redoma, que, se fosse possível, torná-lo-ia ainda mais vulnerável à alienação e à manipulação.

Aos defensores do Escola Sem Partido queremos dizer que o que advogam não é a existência de uma escola sem partido, sem doutrinação, sem ideologia. Isso é conversa pra boi dormir! O que desejam é uma escola com a sua ideologia, com a ideologia de sua classe. Defendem a hegemonia do pensamento liberal e combatem o pensamento das esquerdas. O discurso da neutralidade é só de fachada. Os guardiões da moral e dos bons costumes advogam, na verdade, a manutenção da velha sociedade desigual, excludente, dirigida por homens brancos, ricos e de família tradicional. Direitos humanos, discriminação racial, conversa sobre índios, violência contra mulheres, preconceito contra LGBT’s, oportunidades para todos... Bem, isso é ideologia. Que fique fora da escola!

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