Existem hoje vários projetos tramitando na Câmara dos
Deputados que colocam em risco as bases da educação escolar e criminalizam a
prática docente. Alguns proíbem que professores abordem com seus alunos temas
relacionados à educação moral, sexual e religiosa, relegando tão somente às
famílias tal responsabilidade. Outros pretendem vedar a discussão de gênero,
orientação sexual e os temas transversais na educação. Mas o projeto mais
emblemático é o PL 867/2015, conhecido como “Escola Sem Partido”, que já
tramita também, de forma similar, em várias câmaras de vereadores e assembleias
legislativas. Tal projeto, inspirado no movimento com o mesmo nome (ver www.escolasempartido.org), com o
pretexto de impedir a doutrinação político-ideológica em sala de aula, procura
impor limites à prática docente e dá supremacia à orientação da família sobre a
educação escolar.
Considero que tais projetos retratam a conjuntura da
crise pela qual estamos passando, onde cresce o pensamento conservador e
reacionário, que visa combater as conquistas de direitos por parte das minorias
sociais e segmentos vulnerabilizados socialmente, os quais historicamente
estiveram à margem das políticas públicas. Uma vez aprovados, os professores
deixam de ser educadores, no sentido mais amplo do termo, passam a ser meros
repassadores de conteúdos “neutros” pré-estabelecidos e distantes do mundo
real, perdendo o direito à liberdade de expressão no exercício de sua atividade
profissional. Os docentes ficariam vulneráveis quanto à escolha e forma de
tratar certos conteúdos, pois a qualquer momento poderiam ser denunciados,
condenados à prisão ou exonerados.
O movimento Escola Sem Partido, nas palavras de um de
seus representantes, o advogado Miguel Nagib, “surgiu em 2004 como reação ao
fenômeno da instrumentalização do ensino para fins político-ideológicos,
partidários e eleitorais” (http://www.escolasempartido.org/midia/395-entrevista-de-miguel-nagib-a-revista-profissao-mestre).
Seu objetivo é combater a prática da “doutrinação” dos alunos por parte de seus
professores, ou seja, impedir que estes se aproveitem da “audiência cativa” dos
estudantes em sala de aula para “fazer sua cabeça” com ideias que contrariam a boa
formação moral, religiosa e política dada por seus pais no interior de seus
lares.
É interessante notar que o surgimento do tal movimento
coincide com a chegada da esquerda ao governo federal e, por tudo que temos
lido sobre seus pressupostos filosóficos, podemos afirmar que o que se deseja,
na verdade, é impedir a mudança da perspectiva tradicional de análise da
realidade por parte das pessoas, frear a propagação de um pensamento crítico
frente a sociedade capitalista excludente e opressora e proteger o pensamento
hegemônico da direita. A defesa da suposta neutralidade política da escola
representa a manutenção no contexto educacional do pensamento daqueles que não
querem o questionamento da sua posição social, dos seus valores e dos seus
interesses. Para os representantes do movimento, ideologia na escola? Não.
Perspectiva ideológica burguesa na educação? Aí sim. Sem problemas. Em sua
justificativa estão defendendo as ideias próprias das famílias bem constituídas
e com sólida formação moral.
O movimento Escola Sem Partido parte da mais atrasada
concepção de educação, chamada por Paulo Freire de “educação bancária”, que
considera o professor o sujeito do processo educativo, detentor do
conhecimento, e o aluno seu objeto, que chega à escola de cabeça vazia, onde
serão depositados os conteúdos para serem “sacados” depois no dia das provas.
Os alunos seriam totalmente passivos nesta relação, meros receptores de
conhecimentos prontos e neutros, sem qualquer capacidade de construção do saber
e de formação da sua própria opinião sobre a realidade. Nesta perspectiva, o
movimento quer passar a ideia de que os alunos são sempre vulneráveis, uma vez
que o professor pode se aproveitar de sua autoridade na sala de aula para
executar sua doutrinação política e ideológica.
Cabe-nos aqui ressaltar que a educação tradicional
formou bons defensores do sistema e reprodutores do pensamento hegemônico da
burguesia, mas não impediu que surgissem os questionadores da ordem estabelecida
e os opositores do sistema vigente. A “educação bancária” não impediu o
surgimento do pensamento divergente do pensamento dominante. E por quê?
Justamente porque os educandos não são meros depositários de informações, não vão
para a escola só com a formação dada pela família e nem seu aprendizado se dá
sem sua participação ativa. Quando a criança sai dos limites do espaço
doméstico passa a ampliar sua visão de mundo e a conhecer outras opiniões e
outras formas de se relacionar com a realidade, diferentes daquelas de sua
família. Além do mais, recebe em sua formação uma forte influência dos valores
transmitidos subliminarmente pelos meios de comunicação de massa, que muitas
vezes determinam mais decisivamente o seu pensamento do que seus pais e
professores. Interessante notar que os membros do Escola Sem Partido não
questionam essa “doutrinação” da mídia.
A educação numa sociedade de classes nunca foi e nunca
será neutra. Nenhum professor é politicamente neutro e seus alunos tampouco o
serão. A escola, numa sociedade que se deseja democrática, deve
ser o espaço do exercício do pensamento crítico e da formação para a cidadania.
Deve oferecer aos estudantes instrumentos de análise dos temas da realidade,
considerando a diversidade e a pluralidade cultural, a fim de que os mesmos
conquistem a autonomia no pensar e formem sua opinião, de forma embasada e
crítica. Isso só é possível num ambiente em que se implante a prática do
questionamento e do respeito às diferenças. Impedir o debate na escola de
assuntos pertinentes ao mundo real das pessoas vai tão somente transferi-los
para outros espaços da convivência social do aluno. Seria uma tentativa
frustrada de relegá-lo a viver numa redoma, que, se fosse possível, torná-lo-ia
ainda mais vulnerável à alienação e à manipulação.
Aos defensores do Escola Sem Partido queremos dizer
que o que advogam não é a existência de uma escola sem partido, sem
doutrinação, sem ideologia. Isso é conversa pra boi dormir! O que desejam é uma
escola com a sua ideologia, com a ideologia de sua classe. Defendem a hegemonia
do pensamento liberal e combatem o pensamento das esquerdas. O discurso da
neutralidade é só de fachada. Os guardiões da moral e dos bons costumes advogam,
na verdade, a manutenção da velha sociedade desigual, excludente, dirigida por
homens brancos, ricos e de família tradicional. Direitos humanos, discriminação
racial, conversa sobre índios, violência contra mulheres, preconceito contra
LGBT’s, oportunidades para todos... Bem, isso é ideologia. Que fique fora da
escola!
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