segunda-feira, 11 de setembro de 2023

AINDA SOBRE O “GRITO DOS EXCLUÍDOS/2023”: QUEM TEM MEDO DAS VOZES DAS RUAS? REPRESSÃO AOS MOVIMENTOS SOCIAIS NÃO É NOVIDADE.

 


Mais um Sete de Setembro se realizou por todo o país, com desfiles de militares, alunos de escolas públicas e privadas, fanfarras, bandas, tanques de guerra, carros do Exército e da Polícia Militar. Em algumas capitais, até a Esquadrilha da Fumaça e sobrevoo de aviões e helicópteros. Milhares de pessoas nas ruas para assistirem ao espetáculo, enquanto outros preferem aproveitar o feriadão para ficar em casa e fazer um churrasquinho com os amigos e, outros ainda, vão viajar para pescar ou visitar parentes. Tudo certo!

Quando adolescente, estudante de escola pública na minha cidade natal, também cheguei a desfilar uniformizado, com fita verde-amarela afixada no bolso da camisa, e junto com os colegas de classe marchávamos como se militares fossemos. Achava tudo muito bonito, bem organizado, solenidade que, segundo nossos educadores, despertava em nós o civismo, o amor à Pátria e o respeito aos símbolos nacionais.  

Decorridos muitos anos da minha participação nesses eventos, fui aprender que um país só pode ser considerado verdadeiramente independente, livre, soberano e democrático quando garante ao seu povo vida digna, não apenas a uns poucos, a uma elite privilegiada, mas a todos e todas. O Brasil, uma nação marcada pela diversidade étnico-racial, multicultural, de belezas naturais exuberantes, com um povo trabalhador e determinado, sendo uma das maiores economias do mundo, ainda concentra mais da metade da riqueza nacional nas mãos de 1% dos brasileiros, tem 33 milhões de pessoas vivendo na insegurança alimentar, com milhões de desempregados e subempregados, com sérios problemas de violações dos direitos humanos e uma dívida enorme com os povos indígenas e afrodescendentes. Por esse motivo, acredito, como muitos, que nossa verdadeira independência e soberania ainda estão sendo conquistadas, e que não basta reverenciarmos a Bandeira Nacional, cantarmos o Hino com devoção e andarmos com fita verde-amarela no peito para sermos verdadeiros cidadãos brasileiros. Amar à Pátria, deve significar, antes de tudo e acima de tudo, amor ao povo, e a todas as pessoas, especialmente os mais vulneráveis, e desejar que nossa pátria-mãe gentil seja generosa com todos os seus filhos e filhas.  

É por esta razão que, há 29 anos atrás, por iniciativa da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, os movimentos e pastorais sociais, além de sindicatos e organizações da sociedade civil organizaram o Grito dos Excluídos, em contraposição ao Grito do Ipiranga, liderado por um membro da família real portuguesa, para chamar a atenção da sociedade brasileira para os problemas decorrentes do nosso modelo econômico excludente, que faz do país um dos mais desiguais do mundo, e ainda, não garante o acesso aos direitos de cidadania para uma parcela significativa da população. É um movimento que quer dar voz a quem não consegue fazer chegar o seu clamor aos detentores do poder responsáveis pela elaboração das políticas públicas de garantia de direitos e de mais igualdade de oportunidades para as pessoas.

Aqui em Campo Grande, fui um dos primeiros coordenadores do Grito dos Excluídos, junto com a Irmã Inês Guarnieri, secretaria executiva do Regional da CNBB, e a assistente social da Arquidiocese, Lúcia Furtado, e sempre contávamos com a liderança e a presença de Dom Vitório Pavanello abrindo nossa caminhada pelas ruas centrais (bons tempos de lideranças religiosas sensíveis aos problemas do povo), logo atrás do desfile oficial do Dia da Independência. Militantes e agentes de pastorais, sindicalistas, donas de casa, trabalhadores e trabalhadoras, ativistas dos direitos humanos e de movimentos de mulheres, negros, indígenas, pessoas com deficiências, e tantos outros seguiam segurando cartazes e faixas com suas reivindicações: reforma agrária e urbana, emprego, salário decente, moradia digna, saúde pública de qualidade, entre tantas outras. Este ano, na sua vigésima nona edição, o tema do Grito dos Excluídos foi “Vida em primeiro lugar. Você tem fome e sede de que?”, pedindo políticas e mobilização nacional para erradicar a fome do país e garantir o acesso à água de qualidade para toda a população.

E agora, mais uma vez estávamos nós no Sete de Setembro, concentrados na Barão do Rio Branco com a 13 de Maio, esperando o fim do desfile para iniciarmos nossa caminhada. Não éramos um grupo muito numeroso, como em anos anteriores. Muitos sindicalistas e militantes de gabinete parecem não acreditar mais na luta organizada do povo ou se cansaram. Muitos políticos da esquerda e progressistas preferem esperar pelas próximas eleições para se encontrar novamente com as pessoas nas ruas. Mas, motivados por uma juventude aguerrida e animada, estávamos ali, prontos para portar nossas faixas e cartazes defendendo a democracia, direitos sociais e comida na mesa dos brasileiros e brasileiras. Umas 150 pessoas, talvez.

Caminhamos apenas uma quadra, atrás do último caminhão dos militares, e eis que fomos surpreendidos, na esquina da 13 com a Afonso Pena, com a rua interditada com grades metálicas, um batalhão da Polícia Militar formando uma barreira de ponta a ponta e, logo atrás, uma cavalaria da polícia numa verdadeira muralha. Fiquei estarrecido e, ao mesmo tempo, indignado com a força militar que se formou para impedir nossa passagem por mais algumas quadras. Perguntei aos policiais por que razão estávamos sendo impedidos de realizar uma manifestação tranquila e democrática? Não me respondiam. Só diziam que estavam cumprindo ordens. Então perguntei: ordem de quem? Não me disseram. Pedi que chamassem o comandante para conversar. Nada disseram. Então disse que nós passaríamos, porque estávamos exercendo nosso direito constitucional à manifestação pacífica por direitos sociais. Argumentei, também, que o desfile já havia terminado e que as autoridades, que eles estavam por proteger, já não estavam mais no palanque. A seguir, seguiu-se o jogo de empurra-empurra, que resultou numa senhora jogada ao chão. Após o tumulto, veio finalmente a ordem, não sei de onde (talvez dos céus), para a liberação da pista, permitindo nossa passagem.

Bom, já falei nas redes sociais e repito aqui. Sei que os policiais militares que se portavam ali impedindo nossa passagem estavam cumprindo ordens. A minha indignação é que não houve um canal de diálogo. Quem ali com autoridade se colocou para negociar com o grupo de manifestantes? E seguem outras indagações: quem deu ordens para o Grito dos Excluídos não seguir, passando pelo palanque vazio de autoridades? Foi o comando da Polícia Militar ou foi o governador do Estado? Por que a proibição da manifestação seguir adiante no percurso que há 29 anos sempre fizemos? Seria para não estragar a festa cívica? Seria por medo dos manifestantes? Ou por ser o movimento identificado com a esquerda?

Lembrei-me que em muitas edições do Grito dos Excluídos as autoridades que lotavam o palanque para prestigiar o desfile permaneciam no local até terminar a passagem dos manifestantes. Seria em respeito ao arcebispo que caminhava conosco? Acho que não. Tivemos governantes que entendiam a lógica e a legitimidade dos movimentos sociais e não se furtavam em ouvir as vozes das ruas. Em certa ocasião, por exemplo, tivemos o governador Zeca ao lado do prefeito Puccinelli, arqui-inimigos na política, assistindo à passagem do Grito até o final. Nunca nenhuma autoridade foi agredida ou molestada.  

Sabe o que é revoltante nessa história? É saber que em anos anteriores manifestantes da extrema direita ficaram meses acampados no canteiro central da Afonso Pena, em frente à sede do Ministério Público Federal, fazendo suas manifestações livremente e ninguém do Estado ou da Prefeitura providenciou a desocupação do local. No ano passado, manifestantes a favor do ex-presidente inominável fecharam estradas por não acatarem o resultado das eleições, e foi a maior dificuldade para a desobstrução das vias. Um dia após o pleito eleitoral, havia 148 pontos de bloqueio em rodovias e até o dia 7 de novembro a PRF dispersou, com muito custo, 1.040 manifestações. E os acampamentos em frente dos quartéis do Exército? Totalmente livres para a obstrução de ruas, com acampamentos nos canteiros, instalação de cozinhas, churrasco, algazarras. E o que estavam reivindicando: “intervenção militar constitucional”, que não existe; ditadura militar; anulação das eleições; fechamento do STF e do Congresso Nacional. Muitos defendiam que era um direito de se manifestar. Ora, isso não é manifestação democrática! É crime! Mas nenhuma ordem chegava para desocupação dos locais e para por fim aos atos antidemocráticos. Com isso evoluímos para a tragédia da invasão e do vandalismo nas sedes dos Poderes da República em Brasília, no dia 8 de janeiro deste ano. Houve leniência, conivência e, até mesmo, apoio por parte de muitas autoridades políticas e dos comandos militares neste país. Essas manifestações, sim, eram absurdas e jamais deveriam ser toleradas. Quando se pede a ruptura democrática não se está apenas fazendo uma manifestação política, mas se comete um crime contra o Estado Democrático de Direito.

E agora me pergunto: e por que tantas grades, batalhões da polícia e tantos cavalos para impedir a passagem de 150 pessoas que pediam justiça social num país tão desigual? Por que tanta passividade e omissão com quem cometia o crime de conspiração contra a democracia e tanta agressividade com quem pedia o fortalecimento da democracia em nosso país?

Espero que nos próximos anos os organizadores do desfile oficial convidem os responsáveis pelo Grito dos Excluídos para uma conversa amigável e possam combinar a realização dos eventos cívicos em parceria. Afinal, não queremos todos um país verdadeiramente livre, soberano, mais justo e democrático? Não somos vândalos. Somos cidadãos e cidadãs que desejam uma nação generosa com todos e todas.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Escolas Cívico-Militares: Sim ou Não?

 



 

No segundo semestre de 2022, fui convidado por um professor de sociologia para palestrar numa escola da rede estadual de ensino por ocasião do Dia Nacional da Consciência Negra. A ideia que ensejou o convite à minha pessoa era a de proporcionar um debate com os alunos sobre a lei de minha autoria que implantou as cotas raciais na Universidade Estadual e discutir a eficácia das ações afirmativas nas políticas públicas sociais. Fiquei muito lisonjeado com o convite, até porque esta é uma das coisas que mais me dão prazer: conversar com estudantes sobre temas da atualidade e de assuntos que têm a ver com suas vivências e interesses. Ao adentrar no estabelecimento de ensino, encontrei os alunos de todas as turmas enfileirados no pátio e militares uniformizados circulando ao redor deles. Um dos militares deu uma ordem com a voz em tom muito alto, e os alunos seguiram para as salas de aula numa marcha uniforme e em absoluto silêncio. Foi aí que me dei conta de que estava numa escola cívico-militar.

Tendo chegado na sala da turma com a qual eu iria conversar, fui levado até a mesa do professor e convidado a me sentar. Uma aluna, que estava em pé, ao meu lado, creio que a monitora dos colegas, deu um forte grito: “posição de sentido”, e todos se levantaram. Em seguida, falou uma frase de forma mecânica e com voz grave, ainda em tom alto e muito rápido, que quase não consegui entender. Sei que tinha alguma coisa a ver com minha palestra e com normas de respeito. Ao terminar, gritou: “entendido, turma?”. Ao que todos responderam, gritando: “sim”, batendo continência. “Descansar”, ordenou a monitora. E todos se sentaram. Em seguida, fui autorizado a proferir minha palestra. Eu, que sempre visitava escolas públicas para participar de comemorações, eventos e debater com os alunos, confesso que fiquei bastante constrangido, envergonhado mesmo, com a cena que acabara de assistir. Comecei a falar sobre o tema da minha palestra, mas um pensamento me atormentava o tempo todo: será este o modelo de educação pública que teremos no Brasil de ora em diante?   

No último dia 12 de julho, quase oito meses após aquela minha palestra, o Governo Federal anunciou o encerramento do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (PECIM) no país, criado por decreto em 2019 durante a gestão Bolsonaro. Foi uma decisão conjunta do Ministério da Educação e do Ministério da Defesa, que eram responsáveis pela gestão nacional do programa, sendo que os profissionais das Forças Armadas envolvidos serão desmobilizados de forma gradual, para não causar transtornos no ambiente e nas atividades educacionais. Vale lembrar que o referido programa não passou pela aprovação do Congresso Nacional, além do que não existe na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal nº 9.394/96) e no Plano Nacional de Educação – PNE (Lei Federal nº 13.005/14) qualquer previsão legal que permita às Forças Armadas atuarem na educação básica regular ou nenhum tipo de proposta ou estratégia para a criação de escolas cívico-militares no país. E se não há previsão legal para a implantação do programa na área educacional, o mesmo se pode afirmar sobre o desvio de finalidade das Forças Armadas.

O PECIM é um programa que amplia a desigualdade salarial na escola e privilegia os membros das forças de segurança que atuam nas atividades de apoio e gestão escolar. Ao invés de investir na formação e valorização do magistério, transfere recursos para profissionais que não pertencem à área da educação. Cada militar vinculado ao programa recebe mensalmente, de R$ 2.700,00 até R$ 9.152,00, dependendo da patente, além dos valores que já percebe como aposentado. O adicional mais elevado é maior, em média, que o valor do piso do magistério nacional e, somado aos seus vencimentos de militar, é bem maior que o percebido pelos diretores escolares. Em três anos de existência do PECIM, o orçamento disponibilizado custou aproximadamente R$ 98,3 milhões aos cofres públicos. Atualmente, somente das Forças Armadas, sem contar os policiais e bombeiros militares dos estados, 856 militares atuam no programa. Os investimentos significativos, extraídos do orçamento da Educação para manter militares reformados nas escolas públicas de ensino fundamental e médio em atividades de assessoria e suporte destoam da escassez de recursos que as redes de ensino investem para o pagamento da folha salarial de seus educadores. Os militares que atuam nas escolas cívico-militares não são considerados, para todos os fins, como profissionais da educação básica e, sendo assim, os gastos com militares inativos não podem ser computados como despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino, previstas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, caracterizando, portanto, desvio dos recursos vinculados estritamente à educação.

A justificativa para a realização do programa mostrou-se equivocada, ao pretender que o militarismo seria a solução para o enfrentamento das questões de indisciplina e violência nas instituições de ensino, além de outras advindas da vulnerabilidade social nas localidades onde as escolas públicas estão inseridas, e que suas características poderiam se tornar o tipo de atendimento universal previsto para a educação básica regular. Não há dados públicos que comprovem a eficácia do programa nem informações sobre o desempenho dos alunos que frequentam essa forma de ensino. Das 100 melhores escolas públicas do Brasil, nenhuma é militar. O programa, que pretendia ser um modelo para o setor educacional brasileiro, foi alvo de elogios e críticas, além de denúncias de abusos cometidos por militares, de assédio moral e sexual de alunos, interferências nos programas e planejamentos escolares. Mas, mesmo que houvessem dados positivos, a questão não se resume a resultados. A questão é bem outra. É de concepção e de modelo de educação que se pretende, para ser instrumento de formação para a cidadania e de construção de um país mais justo socialmente e democrático. O ponto central é que tipo cidadãos queremos formar para qual modelo de sociedade? Cidadãos críticos, responsáveis, cientes de seus deveres e direitos, participativos ou cidadãos bem adestrados na obediência a regras e comandos e que saibam bater continência a autoridades inquestionáveis?

O PECIM foi, antes de tudo, um modelo excludente, pois não abrangeu todas as escolas, e de custo elevado aos cofres públicos. Teve pouca adesão de gestores públicos locais, sendo que no auge do programa aproximadamente 200 escolas das 138 mil adotaram o método cívico-militar, ou seja, somente 0,28%. Nenhuma escola privada do Brasil aderiu ao programa e, no início deste ano, 109 escolas públicas abandonaram o mesmo. Pesquisa do Cesop/Unicamp revelou que 72% dos brasileiros confiam mais em professores do que em militares para atuarem nas escolas.

O Ministério da Educação tem por dever constitucional garantir a educação civil, pública, gratuita, democrática, de qualidade social e igual para todo e qualquer filho de brasileiro ou brasileira. As escolas cívico-militares se transformaram em estratégia do governo do ex-capitão do Exército para uso doutrinário e dentro de um contexto ideológico autoritário. O entendimento que temos é que os graves e complexos problemas de vulnerabilidade social, indisciplina e conflitos no interior das escolas públicas devem ser resolvidos com mais investimentos nos recursos instrucionais, valorização dos educadores (professores e administrativos da educação) e com aplicação prática dos princípios e estratégias pedagógico-educacionais. Os problemas das escolas públicas são mais relacionados à falta de investimento em infraestrutura e à desvalorização dos profissionais da educação do que à indisciplina ou a uma pretensa falta de patriotismo ou civismo por parte dos estudantes.

A escola não deve abrir mão das suas responsabilidades e nem transferir suas funções para outras instituições, assim como não cabe às Forças Armadas convocar professores para suas atividades de cunho militar. O problema da indisciplina na escola está muito mais relacionado com a incapacidade que as famílias do nosso tempo estão enfrentando para lidar com as pressões e influências da sociedade via meios de comunicação, redes sociais e, principalmente no mundo virtual da internet, que seduzem, transmitem informações e determinam comportamentos e modos de vida. Estes são muito mais fortes e poderosos do que os pais no seu esforço de educar e transmitir valores. Pais e mães não tem conseguido estabelecer limites no comportamento dos seus filhos e esperam que as escolas o façam, assumindo suas responsabilidades.

Outras questões que interferem de forma negativa no ambiente escolar devem ser analisadas de forma mais abrangente e com base científica, já que a escola reflete os problemas de uma sociedade em crise. Uso de drogas, depressão juvenil, transtornos de ansiedade, gravidez precoce, insegurança alimentar não são problemas gerados na escola ou pela escola, mas no contexto familiar e da sociedade excludente e desigual em que vivemos, e suas consequências devem ser abordadas pelas instituições de ensino como realidades vivenciadas por seus alunos, merecendo os encaminhamentos mais acertados à luz das teorias educacionais, com seminários, palestras, projetos, rodas de conversa, justiça restaurativa, combinados entre diretores-alunos-professores, busca de apoio profissional em psicologia e saúde quando necessários, num ambiente acolhedor e de diálogo.

Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”, ensinava Paulo Freire (Pedagogia da Indignação). A escola não pode tudo, mas pode fazer muito pelos adolescentes e jovens, muitas vezes em crise e sem perspectivas de futuro, para que voltem a sonhar e desejar um espaço de realização pessoal e profissional na sociedade. Querer transferir para os militares as funções dos educadores é o mesmo que admitir a incompetência destes últimos no cumprimento do seu mister. Disciplina, organização e respeito são essenciais para que a educação aconteça e, essas questões, a escola sabe muito bem como fazer, na qualidade de agência especializada na transmissão e construção de conhecimentos e na capacidade de leitura da realidade onde vivem seus alunos.

Escola com regime militar? Pode ser uma opção para quem deseja seguir a carreira militar.

Pedro Kemp

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

CARTA ABERTA AOS CRISTÃOS



 

 Meus irmãos e minhas irmãs em Cristo. Paz e bem!

Nasci num lar católico e herdei minha fé dos meus amados pais. Fui batizado na Basílica Nacional (antiga) de Aparecida-SP, para pagar uma promessa que minha mãe fizera à Nossa Senhora Aparecida pelo nascimento de um filho homem, depois de ter tido quatro filhas. Frequentava minha paróquia desde criança, a Catedral de São Sebastião de Presidente Prudente-SP, onde fiz a catequese, a primeira comunhão e a crisma. Aos dez anos, já era coroinha numa capela da Santa Casa de Misericórdia da cidade, onde o capelão me confiava as chaves e o ofício de abrir as portas da igreja todos os dias para receber as pessoas que iam à missa das 17 horas. Sentia-me orgulhoso e importante por exercer esta função de segunda à sexta-feira. Após as missas, o padre, que eu estimava muito, um santo homem, alegre e amável, me levava consigo para visitar os doentes internados no hospital. O que mais me impactava era entrar na ala pediátrica e ver bebês prematuros nas incubadoras e outros recém-nascidos tomando soro e remédio com agulhas espetadas na cabeça. Isso me marcava muito e, à noite, quase não dormia lembrando daquelas cenas. Influenciado por amigos da minha escola, aos treze anos fui estudar no seminário menor da minha cidade, e estava convicto de que tinha vocação para ser padre, querendo ser como o capelão bondoso da Santa Casa, que eu tanto admirava.

Concluí o curso secundário e fui transferido para o seminário maior diocesano de Londrina-PR, onde cursei filosofia e o início da teologia. Depois de muita reflexão, cheguei à conclusão que não era para mim a vida sacerdotal. Saí do seminário no final de 1982, mas não deixei de atuar nas pastorais da Igreja como leigo engajado. Já em Campo Grande, onde minha família residia, fui atuar numa favela da periferia com os freis capuchinhos, nos finais de semana. Trabalhei na Paróquia Nossa Senhora de Fátima por 37 anos. Mudei de bairro e me engajei na Comunidade Imaculado Coração de Maria, no Carandá Bosque, onde os problemas da minha participação na Igreja começaram, primeiro com o pároco da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, uma vez que o mesmo era um militante bolsonarista ativo nas redes sociais e fazia vídeo pedindo voto dos católicos para Bolsonaro nas eleições de 2018. Considerava uma incoerência muito grande e um contratestemunho de um líder cristão esse comportamento, uma vez que o então candidato tinha um histórico de declarações machistas, racistas, homofóbicas, de incitação ao ódio e à violência. Aos poucos, sutil e covardemente, sem qualquer diálogo comigo, o pároco tratou de me exclui de todas as funções que eu exercia na igreja, chegando até mesmo a retirar da comunidade os serviços e pastorais para que eu não atuasse mais como catequista. Depois, com o novo pároco da recém-criada Paróquia do Carandá Bosque, a situação se tornou insustentável devido a postura autoritária do sacerdote, que praticamente expulsou toda a coordenação da comunidade, da qual eu fazia parte, e que havia iniciado os trabalhos desde a fundação da mesma, para implantar uma paróquia do seu jeito, com pessoas de fora, que fossem submissas às suas determinações e caprichos.   

Confesso que há pelo menos dois anos tenho insistido em professar minha fé, que recebi dos meus pais e da Igreja, e participar de alguma comunidade como fiz a vida toda, para servir e colaborar de alguma forma com a construção do Reino pregado por Jesus Cristo. Mas digo, com profunda tristeza, que está ficando cada dia mais difícil fazê-lo. Sinto que já não sou mais aceito e acolhido como antes, quando atuava no ministério da animação litúrgica, na pastoral do batismo e da crisma, como catequista de adultos, como coordenador diocesano da Campanha da Fraternidade, membro da pastoral da juventude, da pastoral social, da coordenação de promoções e eventos para construção de igreja. Hoje muitos participantes da Igreja não me veem mais como um simples católico na sua comunidade, mas como um político infiltrado, e pior, um “esquerdista”.

Em anos passados, meu nome sempre constou em carta divulgada pelo então arcebispo de Campo Grande, Dom Vitório Pavanello, como um dos candidatos recomendados aos católicos nas eleições. Hoje sou vetado nos espaços onde sempre atuei como leigo, nos serviços, movimentos e pastorais como persona non grata. Já não sou mais confiável. Pergunto-me sobre o que aconteceu nestes últimos tempos: eu mudei ou foi minha Igreja? Por isso, sinto a necessidade de compartilhar com vocês as angústias que estou sentindo, e fico muito à vontade para fazê-lo, porque sempre fui um católico praticante desde a minha mais tenra idade. E resolvi escrever esta carta/confissão pública depois do que aconteceu comigo neste último domingo (02/10), dia das eleições em nosso país.

Acordei logo cedo, com o corpo doendo, cansado e muito ansioso, depois de 45 dias fazendo campanha eleitoral e de ter percorrido mais de 40 municípios e muitos bairros de Campo Grande, debatendo propostas e prestando contas do meu mandato parlamentar. Mas levantei muito animado, com o coração aquecido pela esperança de dias melhores para nosso povo e pronto para exercer mais uma vez meu direito e meu dever cívico de votar, com o propósito de escolher aqueles e aquelas que considero sejam os mais indicados para conduzirem os destinos do meu estado e do meu país. Antes de me dirigir até a escola onde está localizada minha sessão eleitoral, fui à Paróquia Sagrado Coração de Jesus para participar da celebração da missa, como faço todos os domingos desde que me conheço por gente, para agradecer a Deus pela campanha linda que fizemos, propositiva, alegre e militante; pelos amigos e amigas que tenho, pessoas maravilhosas que me acompanham há muito tempo, que me apoiaram e me ajudaram a levar nossa mensagem a todos os cantos do estado; por aqueles que encontrei nestas seis semanas de campanha, que me relataram problemas, reivindicaram, apresentaram propostas. Nada pedi a Deus na missa, nem mesmo pela minha reeleição, apenas agradeci. Após a comunhão, fiz a oração que sempre faço e, que aliás, os padres a recitam ao comungarem: “Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo, que cumprindo a vontade do Pai e agindo pelo Espírito Santo, por vossa morte (e ressurreição) destes vida ao mundo, livrai-me do pecado e de todo o mal, pelo vosso corpo e pelo vosso sangue, dai-me cumprir sempre a vossa vontade e jamais separar-me de vós”.

A celebração transcorreu normalmente, até que nos recados finais o padre se pôs a “orientar” os fiéis para que votassem como verdadeiros cristãos. O discurso que ele passou a fazer induzia sutilmente os presentes a votarem no presidente Bolsonaro e nos candidatos da direita e da extrema-direita, porque reproduzia as acusações que estes costumam fazer à esquerda e ao presidente Lula, falando de aborto, “ideologia de gênero”, de casais homoafetivos, de liberação de drogas, etc. Este discurso, a propósito, foi muito utilizado nas eleições passadas e ajudou grandemente a campanha do candidato que ganhou as eleições. Dispensei as “orientações” sutis do padre, resolvi deixar a igreja e apressei-me para votar. Ao me retirar do templo, percebi que estava sendo filmado, mas nunca poderia imaginar que alguém (quem sabe um cristão autêntico, defensor da família, de Deus, da Pátria e da liberdade) pudesse fazer um vídeo para postar nas redes sociais e nos grupos de igreja, procurando reprovar meu comportamento e queimar minha imagem como político e como católico. Algumas horas depois, comecei a receber o vídeo de amigos e amigas que me conhecem, indignados com a atitude do “irmão”, que não teve a hombridade de me procurar e me perguntar por que saí da igreja e que usou desse expediente covarde para me atacar. Eu teria o maior prazer de responder a ele e ao padre o porquê do meu comportamento. O vídeo viralizou, e as imagens, divulgadas sem minha autorização, foram acompanhadas de comentários ferindo minha honra, minha reputação e minhas convicções. Não foi a primeira vez que católicos fizeram este tipo de coisa tentando prejudicar minha eleição. Mas sempre segui em frente com minha consciência tranquila como cristão e como homem público, defendendo meus princípios e minha fé.

Agora tenho que dizer, causa-me indignação a postura de padres, pastores e leigos que acusam o PT e Lula com essas pautas de costumes mal formuladas e mentirosas, com discursos moralistas, e que fazem campanha, explícita ou dissimuladamente, para o presidente da República que elogia torturadores, que estimula o armamentismo, que é a favor da pena de morte, que acha que as mulheres trabalhadoras devem receber salários menores porque engravidam, que propaga o ódio e a violência, que agride pessoas com palavras de baixo calão, que fala que filho gay é falta de porrada, que disse que não corre o risco de ter uma nora negra porque seus filhos foram bem educados, que não aceitaria ser operado por um médico cotista, que conheceu um negro numa comunidade quilombola que pesava sete arrobas e que o erro da ditadura foi torturar ao invés de matar.

Pergunto a essas lideranças religiosas se é cristão quem defende tais afirmações? Pergunto se é cristão quem fala “Deus acima de todos” (usando o nome de Deus em vão) e deu risada das pessoas que morriam de falta de ar na pandemia, imitando-as na agonia? É atitude de cristão quem foi contra as medidas sanitárias e atrasou a compra de vacinas para salvar a vida dos brasileiros, e que colocou em dúvida a eficácia dos imunizantes, deixando de defender a vida do povo brasileiro com informações corretas e cientificamente amparadas? É cristão quem autorizou pastores evangélicos a negociarem com o ministro da Educação o desvio de recursos orçamentários da pasta para a construção de igrejas e barras de ouro como propina? É cristão quem decretou sigilo de cem anos sobre documentos que podem esclarecer denúncias sobre sua família e seu governo? É cristão quem substitui delegados e agentes da Polícia Federal que investigam denúncias de crimes supostamente praticados por membros de sua família e por ele próprio? É cristão quem não gosta dos pobres e que disse que estes só servem para votar, com o título de eleitor numa mão e o diploma de burro na outra? É cristão quem discrimina os negros e os indígenas? É cristão quem "deixa a boiada passar" durante a pandemia para flexibilizar a legislação ambiental, faz um desmonte nos órgãos de fiscalização e se omite perante as ações criminosas de destruição do meio ambiente, nossa casa comum? É cristão atacar as instituições, estimular invasão da Suprema Corte do país e ameaçar romper com a ordem democrática, inclusive insinuando golpe de Estado com apoio das Forças Armadas, caso tenha seus interesses contrariados?

Gostaria muito de saber como padres e pastores bolsonaristas conseguem encontrar fundamento no Evangelho de Jesus Cristo para apoiar quem prega o ódio, o preconceito, a violência, a tortura, o desprezo pela vida humana. Não seria melhor admitir que não querem se indispor com os ricos que doam grandes quantias nos dízimos, doam vacas para os churrascos nas quermesses e prêmios nos bingos das paróquias? Não querem se indispor com os senhores do Agro, majoritariamente bolsonaristas? Não vejo esses líderes religiosos manifestarem qualquer preocupação com os pobres nas missas e cultos, com a volta da fome em nosso país (hoje 33 milhões de brasileiros passam fome), com a inflação dos alimentos, com a retirada de direitos dos trabalhadores, com o desmonte nas políticas públicas sociais, com a extensa fila de espera das cirurgias e dos exames, com a redução do orçamento da Farmácia Popular, com o não reajuste das verbas da merenda escolar, com o corte de recursos para tratamento de câncer, com o orçamento 95% a menor para habitação popular. Não vejo padres, bispos e pastores bolsonaristas indignados com o orçamento secreto que vai retirar 18 bilhões de reais das políticas públicas para comprar os deputados do Centrão. Nunca vi uma única vez sequer, em todas as missas que participei, os párocos bolsonaristas a que me referi acima falar a palavra pobre em suas homilias.  

Mas vamos à pauta moral e a outras inverdades propagadas maldosamente por líderes religiosos, que tanto adoram repetir e que confundem a população. Fazem coro à indústria de ódio e fake news, que lota a internet com alegações mentirosas e inventadas sobre Lula e as igrejas, criando histórias que jamais existiram, fabricam falas em vídeos editados e tentam criar pânico sem qualquer compromisso com a realidade. Aliás, a principal estratégia da direita e extrema-direita é plantar o medo nas pessoas para vencer e dominar. Lula nunca defendeu a alteração da legislação brasileira sobre o aborto e já afirmou com todas as letras que, pessoalmente, é contra a prática. Diferentemente de Bolsonaro, que em entrevista à revista IstoÉ, em fevereiro de 2000, defendeu o direito ao aborto e disse “que tem que ser uma decisão do casal”. O que Lula fez enquanto presidente foi combater a fome, a desnutrição infantil, melhorar as condições de vida das famílias pobres com o Bolsa Família, investir na educação, que reduziram a mortalidade infantil e salvaram milhares de crianças neste país. Na verdade, na verdade, digo a vocês, muitos condenam as mulheres que fazem aborto, mas não condenam os pais que abandonam seus filhos no ventre das mães sem sequer lhes darem o direito do registro dos seus nomes na certidão de nascimento das crianças. Muitos condenam o aborto, mas não se interessam com a dignidade das crianças que nascem na miséria e que têm seu futuro comprometido. Não vejo nas paróquias e templos evangélicos lideranças religiosas preocupadas com a violência doméstica, fruto do machismo, com os altos índices de feminicídio e de estupros em nosso estado. 

Lula nunca defendeu a legalização das drogas. Lula nunca defendeu o fim da propriedade privada e a estatização dos meios de produção no Brasil, ou seja, a implantação do comunismo. O que Lula fez e defende é o combate às desigualdades sociais, o enfrentamento à pobreza, a distribuição de renda, que todos possam comer três vezes ao dia, educação e saúde de qualidade para todos, acesso à habitação digna, promovendo o respeito à diversidade, aos direitos fundamentais das pessoas, o fim dos preconceitos e discriminações por qualquer motivo, a dignidade aos povos indígenas e aos trabalhadores rurais, oportunidades de trabalho e salários decentes, formação em nível superior aos jovens das camadas populares. Defender essas propostas é ser comunista ou é ser cristão? Se vocês acham que é comunismo, fraternalmente lhes digo, sempre é bom estudar para se livrar da ignorância.

Desculpem a franqueza, mas o ódio que muitos de vocês sentem do Lula e do PT, para mim, no fundo, é ódio ao que eles representam, ódio dos pobres, dos excluídos e marginalizados. A elite brasileira é impregnada e reproduz a cultura escravocrata de 350 anos de escravidão no país, que não aceita a ascensão social dos negros e dos pobres e não quer trabalhadores com direitos assegurados, mas quer escravos para produzirem suas riquezas; não aceita que os filhos das empregadas domésticas sentem nos bancos das universidades e que os pobres viajem de avião. Para entender melhor esta afirmação, sugiro que vocês leiam o livro A elite do atraso, do sociólogo Jessé Souza. Quantos de vocês, senhores padres, bispos e pastores, se posicionaram na reforma da Previdência Social, que tornou quase impossível ao trabalhador se aposentar e, se conseguir, não receberá mais salário integral? Quantos comentaram a reforma trabalhista, que alterou 117 artigos da CLT, precarizando os direitos dos trabalhadores? Quantos se incomodaram com a volta do Brasil ao mapa da fome e se indignaram com nossos irmãos na fila do osso ou comprando pele de galinha para se alimentar?

A exemplo do Papa Francisco, que muitos chamam de esquerdista, convido-os a saírem um pouco de suas sacristias e irem às periferias, como uma “igreja em saída”, para conhecerem a dura realidade dos pobres, das aldeias indígenas, dos assentamentos, e a voltarem como bons pastores “com cheiro das ovelhas” nas roupas e no corpo. Aliás, vocês leem os documentos do Papa? Se sim, vocês seguem suas orientações? O Santo Padre, que tanto amo e respeito, e que é um profeta nesses tempos sombrios, ensina que a igreja deve acolher e não condenar, como fez Jesus, e não negar a Palavra de Deus a ninguém. Disse também, ao conceder entrevista, que os casais homoafetivos, como filhos de Deus, têm o direito à união civil garantida pelo Estado para que tenham seus direitos resguardados, e tenham o direito de ter uma família”. Ou eu estou errado?

Senhores pastores bolsonaristas, vocês afirmam nos púlpitos que se Lula for eleito vai fechar igrejas evangélicas. Por que vocês mentem dessa forma? Não se envergonham de tamanha desfaçatez? Por que vocês não dizem aos seus crentes que Lula já governou o Brasil por 8 anos e nunca fechou nenhum templo e, mais, que foi ele quem sancionou a Lei da Liberdade Religiosa no Brasil e a Lei que cria o Dia Nacional da Marcha para Jesus? Por que vocês reforçam as fake news que dizem que Lula é satanista? Como vocês podem manipular a fé daqueles que vão às igrejas atrás de conforto espiritual? Quantos de vocês usam os púlpitos de seus templos para promover pastores/candidatos, quase que obrigando seus fiéis a votarem neles.

 

Senhores padres, bispos e pastores bolsonaristas, vocês sabiam que o preconceito que vocês alimentam mata pessoas? Segundo o Instituto Sou da Paz, a população negra, que representa 56% dos 212 milhões de habitantes, é a mais vitimada pela violência e que dos cerca dos 30 mil assassinatos por ano por agressão armada, 78% são contra pessoas negras. Vocês sabiam que, segundo levantamento realizado com jovens estudantes LGBTQIA+ no Brasil apontou que 73% deles relataram terem sido agredidos verbalmente e outros 36% fisicamente, e que a intolerância sobre a sexualidade levou 59% a faltar às aulas, e mais, que estes jovens rejeitados por suas famílias têm 8,4 vezes mais chances de tentarem suicídio? Quem não se lembra do profissional de saúde, Gustavo Lima, que foi impedido por uma senhora de vacinar sua filha contra covid no Albano Franco, em Campo Grande, por ser “viado”, segundo a mulher? Gustavo entrou em depressão profunda e dias depois do ocorrido se suicidou. Após um ano da sua morte, ainda acompanho a dor de sua mãe pelas redes sociais lamentando a perda do seu amado filho. É isto que vocês querem com suas pregações moralistas? Abomino a moral hipócrita de vocês, sabiam?

 

Senhores, líderes cristãos, vamos conversar sobre o Evangelho de Jesus Cristo, o pregador itinerante da Galileia, que percorreu vilas e aldeias pregando o amor, a misericórdia, o perdão, a partilha do pão e a solidariedade entre as pessoas, que acolhia a todos, confortando seus corações, curando suas enfermidades e ensinando a amar a Deus em espírito e verdade. Vamos olhar para nosso Mestre, que condenou os poderes opressores e a transformação do templo em covil de ladrões e criticou os fariseus pela moral hipócrita que escravizava os pobres e os saduceus que manipulavam a fé dos mais simples para encher seus cofres com dinheiro das ofertas. Vamos reconhecer que nosso Senhor não morreu de idade avançada numa cama, mas que tomou posição ao lado dos excluídos e contra a opressão e a morte, e que foi feito um preso político, acusado do crime de sedição, que foi condenado e morto com a pena de morte reservada aos subversivos. Qual o trecho do Evangelho mais longo que é lido todos os anos na liturgia das igrejas na sexta-feira santa, se não é o da condenação injusta de Jesus, entregue pelos sacerdotes do templo para os governadores do Império Romano? Interessante nesta leitura a trama construída pelos poderosos para matar o Messias, igual a muitas condenações injustas nos dias atuais para tirar de cena quem é a favor do povo mais pobre, não é mesmo? Enfim, foi em nome da moral, dos bons costumes, das interpretações das leis divinas, da manutenção da ordem e da segurança do sistema político-econômico-religioso que muitos desejaram e aplaudiram o assassinato do Filho de Deus, que se entregou à morte por causa das verdades que defendia e em obediência ao seu Pai. Quem sabe os que fazem arminha com as mãos hoje não matariam novamente Jesus, que acolheu e perdoou a mulher adúltera, que convivia com samaritanos tidos como hereges, cobradores de impostos corruptos, que colocava a lei do descanso do sábado em segundo lugar ao promover a vida curando doentes e alimentando os famintos. Talvez ele seria igualmente rejeitado por andar com pobres e marginalizados do sistema.

 

Infelizmente, tenho que dizer que não é novidade ver setores das igrejas cristãs defendendo regimes autoritários. A Ação Integralista Brasileira (AIB), criada em 1932 e influenciada pela ascensão do nazi-fascismo europeu, contou com o apoio e organização da Igreja Católica. O golpe de 1964, que instituiu a ditadura militar no Brasil, com perseguições, torturas e mortes, contou com apoio de vários setores da sociedade e, neste contexto, a Igreja Católica se posicionou a favor do golpe, o que foi reconhecido posteriormente pela CNBB como um erro histórico. Em 2016, o golpe que retirou do poder a presidenta Dilma, democraticamente eleita pelo povo e reconhecida hoje pelo seu vice golpista, Michel Temer, como uma “mulher honestíssima”, contou com amplos apoios de setores da Igreja, que mobilizaram as pessoas para as passeatas do Fora Dilma. Após o golpe, o país assistiu a volta ao poder daqueles que sempre governaram para atender os interesses da elite do dinheiro e pouco se lixam para a classe trabalhadora e os pobres. E agora, é triste ver líderes religiosos apoiando um governo incompetente para resolver os graves problemas que afligem a nação, que aprofunda as desigualdades sociais e que ameaça as instituições democráticas. Lamentável! Como são incapazes de aprender com a história!

 

Por fim, gostaria muito de conhecer o irmão que divulgou o vídeo de minha saída da Paróquia Sagrado Coração de Jesus no final da missa no dia das eleições. Estou entrando com um requerimento dirigido ao pároco solicitando as informações sobre quem foi o responsável pela divulgação, para interpela-lo judicialmente sobre o uso indevido da minha imagem nas redes sociais e por me ter caluniado e atentado contra minha reputação. Queria muito saber com que intenções divulgou nos grupos de igreja com falsas acusações.

 

Para que não reste dúvidas aos meus irmãos cristãos sobre minhas posições, quero reafirmar aqui o que sempre defendi na minha vida: sou pessoalmente contra o aborto e defendo a vida do nascimento à morte natural; defendo que as crianças possam nascer e crescer com dignidade, num país com mais justiça social e fraternidade; que tenham direito à educação de qualidade e o acesso aos demais direitos de cidadania; que tenham direito à uma família; que possam morar numa casa decente e possam brincar e sonhar com um futuro de realização pessoal e profissional. Quanto às minhas posições políticas não as separo das minhas convicções religiosas. Nunca votei ou votarei no parlamento a favor de qualquer matéria que as contrarie, por dever de consciência e pela ética que sempre pautou minhas ações. Sou seguidor de Jesus de Nazaré, que afirmou ter “sido ungido pelo Espírito para evangelizar os pobres, para proclamar a liberdade aos cativos, para recuperar a vista aos cegos, para libertar os oprimidos e para proclamar o ano da graça” (Lc 4,18-19), e que seremos julgados diante das seguintes afirmações: “Eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram; necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês me visitaram” (Mt 25,35-36). Seguindo os ensinamentos do Mestre, luto “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

 

 

 

Pedro Cesar Kemp Gonçalves

 

Campo Grande-MS, 04/10/2022 – Dia de São Francisco, o pobrezinho que abalou as estruturas da Igreja medieval, corrompida pela opulência e distante dos pobres e do Evangelho.

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Páscoa na Sexta-Feira da Paixão

 



Nesta sexta-feira, em que a comunidade dos cristãos recorda a paixão e morte de Jesus, antecipou-se para mim a celebração da Páscoa da ressurreição. Uma grande alegria, misturada com um sentimento de alívio, tomou conta do meu coração. Logo de manhã, com a xícara de café ao meu lado, abri o celular para ler as mensagens recebidas dos amigos, e uma delas me informava: “A nenê já entrou no centro cirúrgico e iniciaram o procedimento”. Logo abaixo do áudio, uma foto da menina que ia ser operada. Ao vê-la, quase não acreditei, porque não esperava. Já explico o motivo de tanto júbilo.

No último dia 18 de março, estive na cidade de Coronel Sapucaia, divisa com o Paraguai, para fazer a entrega de uma emenda parlamentar na APAE do município. O recurso que destinei para a entidade foi investido na construção de uma piscina, para servir ao atendimento das crianças com deficiência. No ato da inauguração, estavam presentes membros da diretoria, voluntários e funcionários da instituição, algumas autoridades municipais, pais e mães dos alunos com seus filhos especiais. Quando chegou a minha vez de fazer uso da palavra, percebi que, enquanto falava da realidade das famílias que lutam por atendimento aos seus filhos com deficiência, um dos pais, que segurava sua filha no colo, assentia com a cabeça e derramava lágrimas com minhas palavras. Aquela cena me tocou. Terminadas as falações, enquanto todos conversavam e aguardavam o descerramento da placa de inauguração, aproximei-me daquele pai e vi que sua menina, D., tinha hidrocefalia. A criança, de cabeça grande e olhos já um tanto esbugalhados, se contorcia nos seus braços e tinha uma expressão de dor. Perguntei como estava o tratamento dela, e ele me disse que há meses vinha lutando para conseguir a cirurgia para implantação da válvula de drenagem do líquido que comprimia cada vez mais o cérebro de sua filha. Disse que, após muitas tentativas de agendamento da cirurgia sem sucesso, tinha procurado a Defensoria Pública do município e aguardava por alguma providência que pudesse beneficiar a menina. Pedi a ele que me passasse o nome completo da D. para que eu pudesse acompanhar o caso. Ao final da confraternização com as famílias, ao me despedir dos presentes, recebi um envelope que continha a foto da criança com seu nome completo.

Nunca utilizei do cargo público que exerço para solicitar privilégios em favor de alguém, influenciar decisões ou reivindicar algo que contraria a legislação ou os princípios da administração pública. Mas sempre procurei fazer o possível para que as pessoas tenham seus direitos fundamentais assegurados, principalmente quando se tratam de pessoas empobrecidas e vitimadas pelas injustiças e exclusão social. A foto da menina D. sobre a minha mesa de trabalho olhava para mim a todo momento e comprimia meu cérebro. Ficava imaginando como ela estaria se contorcendo de dores no colo do pai ou da mãe. Liguei na Defensoria e fui informado que uma ação judicial tramitava em favor da criança. Um parêntesis, nossa Defensoria Pública é muito atuante e faz jus à sua missão de garantir o acesso à justiça aos pobres e despossuídos. Alguns dias depois, fiquei sabendo que uma liminar havia sido concedida para garantir a realização da cirurgia que a criança precisava e que a família tanto aguardava. O receio, porém, era que o Estado interpusesse recurso à decisão judicial e atrasasse ainda mais o procedimento ou derrubasse a liminar. As notícias de Coronel Sapucaia chegavam dando conta que a criança sofria e chorava dia e noite com dores. Liguei para a Procuradoria Geral do Estado e tentei sensibilizar os procuradores para que não recorressem da decisão. Foi-me garantido que a liminar seria acatada e que a cirurgia seria realizada, mas que o Estado tinha o prazo de 60 dias para cumprir a decisão judicial. Um tanto quanto aliviado com as notícias, fiquei um pouco angustiado com este prazo. Meu cérebro comprimia. A informação agora era que D. estava internada, cada vez mais inquieta. Liguei para a Secretaria de Saúde, pedi atenção para o caso, tentei sensibilizar, tinha decisão judicial, era direito da criança, era uma urgência, hidrocefalia pode resultar em sequelas irreversíveis, deficiência mental, convulsões.... Tenho que dizer que o anjo da guarda da D., chamado Elvis, entrava na minha sala todos os dias, trazia as notícias sobre o seu estado de saúde, comprimia minha cabeça ainda mais e me lembrava de fazer as ligações para interceder pela criança. Depois de tudo, só me restava aguardar e torcer para que os prazos fossem reduzidos.

Nesta sexta-feira santa o Elvis me deu a notícia de que a cirurgia estava sendo realizada. Foi a celebração da minha Páscoa. O Estado cumpriu com seu dever. A família da criança garantiu o direito da sua pequena. Vida nova, alegria pascal para D. e para todos nós! Quero voltar à cidade de Coronel Sapucaia para conhecer o sorriso daquela menina. Quero vê-la na piscina da APAE brincando com as demais crianças. Quero olhar para seus pais e dizer-lhes que o amor deles por sua filha foi maior que a burocracia do Estado e foi capaz de tocar nosso coração, muitas vezes adormecido diante das injustiças dessa sociedade desigual e excludente.

Direito não é privilégio! É condição fundamental para se viver com dignidade. Só de pensar que a fila dos injustiçados está cada vez mais comprida, a indignação cresce e o desejo de lutar não se cansa, até que todos sejam vistos e respeitados.

Feliz Páscoa, D.!

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Exigência da carteira de vacinação no serviço público

 



Os negacionistas estão me atacando por causa do meu projeto de lei que determina a exigência da carteira de vacinação para os servidores públicos estaduais no ambiente de trabalho. Já me chamaram de nazista, fascista, autoritário e tudo o mais. Não me incomodo com as críticas que vêm de pessoas que se colocam contra a ciência e não seguem as recomendações dos infectologistas e de outros especialistas em saúde pública. Eles alegam que a medida é autoritária e fere o direito a liberdade individual das pessoas.

Antes de mais nada, sugiro que estas pessoas visitem os textos da filosofia que tratam do conceito de liberdade, para que aprendam de uma vez por todas que a liberdade individual tem seus limites, como por exemplo, o de não atentar contra a vida e a liberdade de outras pessoas. No sentido político, a liberdade civil ou individual é o exercício de sua cidadania dentro dos limites da lei e respeitando os direitos dos outros. Ninguém é livre para contaminar seus semelhantes com um vírus que pode levar as pessoas a formas graves de uma doença, e que, em alguns casos, pode matar. Quem quer livremente colocar em risco sua própria saúde, que não atentem contra a saúde dos seus semelhantes. Isso não é eticamente aceitável. Ah, e não me venham falar que a vacina está matando as pessoas e que já existem mais de 20 mil mortos por causa dela. Por favor, não espalhem fake News! Já está mais do que comprovado que, à medida em que avança a vacinação no país, diminui consideravelmente os casos de contaminações e de mortes. Hoje, os casos graves de pacientes internados em Mato Grosso do Sul são de não vacinados.

A Fiocruz recentemente recomendou o passaporte vacinal como exigência nos diversos ambientes de trabalho, destacando que os benefícios da proteção coletiva não são só para os trabalhadores, mas para suas famílias, crianças, colegas de trabalho e para a comunidade.  

Em um momento em que muitos defendem o direito de não se vacinar, inclusive do “digníssimo” presidente da República e do seu ministro da Saúde (o que é um verdadeiro absurdo!), somos defensores do direito da maioria da população que deseja retomar suas atividades em escolas, universidades, espaços de lazer, academias, restaurantes, igrejas e, principalmente, suas rotinas nos ambientes de trabalho, da forma mais segura possível, incorporando os cuidados recomendados pela ciência e pelos especialistas no assunto.

Servidores públicos prestam serviços à população, sendo que muitos destes são considerados essenciais, como os serviços em unidades de saúde, escolas, unidades de segurança, entre outros, e, portanto, têm o dever de se imunizar para não colocar em risco a saúde de seus colegas de trabalho, bem como dos cidadãos que buscam por atendimento nas repartições públicas. 

Nosso dever, enquanto agentes públicos, é o de zelar pelo direito à saúde de todos os cidadãos, seguindo o que preconiza a ciência. Num período de pandemia, quando ainda não existem formas de tratamento da doença, vacinar-se é um ato de proteção da própria saúde e uma atitude ética de respeito para com a saúde da coletividade. 


Vacina para todos! A vida acima de tudo!

domingo, 21 de novembro de 2021

DEMOCRACIA SEM FAKE NEWS

 


Nesta semana, recebi de um amigo um áudio gravado por uma pessoa que desconheço, que está circulando em grupos de servidores públicos no whatsapp, dizendo que eu estaria contra o reajuste salarial do funcionalismo estadual proposto pelo governo e, que até, pediria vistas do projeto para atrasar a votação e impedir que o mesmo fosse aprovado ainda neste ano. Quem me conhece sabe da minha história em defesa dos trabalhadores do setor público e privado, o quanto já enfrentei embates com os governos, inclusive do meu partido, para cobrar a valorização das categorias de servidores, e quantas vezes intermediei negociações salariais na Assembleia Legislativa. Por isso, não posso acreditar que a pessoa que gravou o áudio e o divulgou para um público específico, interessado no assunto, seja alguém mal informado. Ao contrário, trata-se de mais um produtor de fake news, com claros objetivos de prejudicar minha imagem e a do meu partido junto aos servidores. Esta é uma prática que, além de repugnante e antiética é, também, criminosa.

A disseminação de notícias falsas no campo da política não é novidade. Na história do Partido dos Trabalhadores, então, não foram poucas as vezes em que se procurou vincular a imagem do partido à desordem, por apoiar greves; ao comunismo, por defender políticas de inclusão social; e a atentar contra a propriedade privada, por defender a reforma agrária e a demarcação de terras indígenas. Lideranças do partido foram criminalizadas e atacadas com mentiras divulgadas sistematicamente. Quem não se lembra das notícias propagadas nas eleições de 2014, de que a então candidata Dilma Roussef aprovaria a descriminalização do aborto, caso fosse eleita? E as histórias do Kit-gay? Lembram quando afirmavam que o Lulinha, filho do ex-presidente Lula, era proprietário da JBS? Só para ficar em alguns exemplos. Esta prática foi aprimorada e profissionalizada com o surgimento das redes sociais, enquanto instrumento de uma verdadeira guerra eleitoral no mundo virtual.

A expressão fake news passou a ser conhecida e amplamente utilizada em nosso vocabulário a partir de 2016, nas eleições americanas que elegeram Donald Trump, em razão da divulgação em massa nas redes sociais de muitas mentiras pelos apoiadores de sua campanha. Aqui no Brasil, a mesma estratégia eleitoral passou a ser utilizada nas eleições de 2018, contribuindo com a vitória nas urnas do então candidato, simpatizante de Trump, Jair Bolsonaro. E, para alimentar a rede de disseminação das notícias falsas, muito dinheiro foi investido na contratação de profissionais e na montagem da rede de multiplicadores das mensagens. E a prática continua de vento em popa, para tentar manter a base de sustentação do presidente na sociedade e criar os factoides, que têm por objetivo desviar a atenção da população dos problemas que seu governo não consegue resolver.

Desta forma, o que já temos clareza hoje é que, não se tratam apenas de simples notícias falsas que são divulgadas por profissionais da comunicação. São conteúdos muito bem pensados e divulgados, com status de verdades, para alimentar uma rede de apoiadores, que não têm o cuidado e a prática de checar a veracidade das informações que recebem, e passam a fazer o trabalho voluntário de reproduzir os conteúdos em seus grupos e contatos nas redes sociais. Ao receitar cloroquina para tratamento da covid, incentivar aglomerações de pessoas sem a proteção das máscaras e colocar em dúvida a eficácia das vacinas, por exemplo, o presidente da República planejou uma situação para se alcançar a chamada imunidade de rebanho no país, e não prejudicar o andamento das atividades econômicas, mesmo que tal objetivo custasse a vida de centenas de milhares de brasileiros. Trata-se de uma estratégia com objetivos políticos bem definidos, que forma uma base de apoio manipulada e pronta a fazer a defesa, muitas vezes de maneira cega e irracional, das ideias do seu líder maior.

Foi assim que passamos a viver uma era de desinformação, de discussões rasas e apaixonadas, com argumentos mais na esfera da crença do que da ciência. Hoje está muito difícil debater com determinadas pessoas que navegam nas redes das fake news e que vêm o presidente da República como o homem de bem, apoiado em princípios cristãos, defensor da família tradicional e libertador da nação do perigo do comunismo. Bastou fazer um discurso como representante de valores morais e utilizar o slogan “Deus acima de todos” para conquistar amplo apoio entre evangélicos pentecostais e católicos tradicionalistas. E além de manipular o sentimento religioso nas pessoas, ele sabe muito bem direcionar a atenção da sociedade para falsos problemas e situações fabricadas, como o tratamento precoce contra covid, a polêmica do voto impresso, o possível golpe de estado no dia 7 de setembro, o STF que não o deixa governar, fazendo com que os problemas reais do país - inflação, desemprego, fome, miséria -, fiquem em segundo plano nas discussões.   

O show de mentiras e afirmações imprecisas do presidente já se tornou sua marca principal e se tornou conhecida até mesmo no cenário internacional. Sua participação na abertura da Assembleia Geral da ONU foi um verdadeiro fiasco, que tão somente acenou para sua base eleitoral no Brasil, tentando passar a ideia de um governo bem-sucedido, exitoso na política econômica e ambiental e de enfrentamento à pandemia. Teve a audácia de defender, diante das delegações do mundo todo, o uso de medicamentos sem eficácia para a Covid-19, mostrando-se ainda favorável ao ‘tratamento precoce’ e contra medidas sanitárias mundialmente reconhecidas, como o lockdown, uso de máscaras e distanciamento social. Disse que não há corrupção em seu governo, mesmo com as revelações da CPI do Senado de esquema de compra de vacinas com preços superfaturados e pagamento de propinas; afirmou que o BNDES financiava obras em países comunistas sem garantias; que a legislação ambiental brasileira é a mais completa do mundo; que foram criados 1,8 milhão de novos empregos neste ano; que as manifestações de apoio ao seu governo em 7 de setembro foram as maiores da história do país. E, como não poderia deixar de fazer para completar sua peculiar oração, reafirmou os valores cristãos, defendeu a família tradicional e disse ter afastado o Brasil do socialismo.

É importante dizer que Bolsonaro não quis passar uma mensagem para o mundo. Os países conhecem muito bem a real situação que estamos vivendo em terras tupiniquins. Sabem da nossa crise econômica, do aumento da inflação, dos 14 milhões de desempregados, da volta do país ao Mapa da Fome, dos retrocessos na área ambiental e da desastrosa política de enfrentamento à pandemia, que já ceifou a vida de mais de 610 mil pessoas. O presidente brasileiro ocupou a tribuna da Organização das Nações Unidas para se dirigir aos seus apoiadores brasileiros e reforçar sua pré-campanha à reeleição em 2022. Quis, tão somente, reafirmar-se como homem de coragem para dizer o que disse perante o mundo, sendo o “mito” que seus eleitores conheceram em 2018 e que não abre mão de defender o que mais lhe importa, ou seja, ele mesmo. 

Desta forma, temos entre nós um exemplo perfeito de como ganhar eleições e governar utilizando-se de fake news, como a arte de dizer mentiras com aparência de verdade, para formar a opinião de uma multidão de seguidores que se tornam defensores de seu projeto de poder. Por trás da pauta dos costumes, de defesa da família tradicional, dos valores cristãos e da moral, está a política neoliberal, que aprofunda as desigualdades sociais, privatiza e promove o desmonte do Estado e ataca as políticas públicas sociais. Os pobres e a classe média remediada passam a apoiar seu discurso, com medo da “ameaça comunista”, mesmo sem saber explicar o que seria tal ameaça.

Fake News é isto: instrumento bem planejado de manipulação das massas! Representam não só um ataque ao direito das pessoas de acesso às informações verdadeiras, mas comprometem a própria democracia, conquanto deturpam o debate de projetos e propostas e impedem a escolha consciente do que consideram ser melhor para o futuro do país. Faz mal à saúde, à educação, ao meio ambiente, enfim, à construção de um projeto de Brasil mais justo e solidário. Às pessoas de bom senso e comprometidas com a democracia cabe a responsabilidade de atuarem no sentido de se restabelecer neste país o debate sério sobre os reais problemas que preocupam a maioria do nosso povo, na perspectiva da busca de soluções a curto, médio e longo prazo. Somos uma grande nação e temos um povo valoroso. Precisamos de dirigentes sérios e responsáveis para dirigir nossos destinos.

 

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Enem com a cara do Governo

 


Faltando pouco mais de uma semana para a realização do Exame Nacional do Ensino Médio, 37 funcionários do Inep – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, órgão responsável pelas provas, pediram demissão de seus cargos, alegando censura, falta de comando técnico, clima de insegurança e medo na instituição. Segundo denunciaram em entrevista ao Fantástico do último domingo, o Presidente do Inep, Danilo Dupas, teria ido até a sala segura onde as provas ficam armazenadas e lido as questões montadas pelas equipes técnicas. Depois disso, teria solicitado a exclusão de mais de vinte questões das provas. “Eram questões que tratavam principalmente da história recente do país, dos últimos 50 anos. Sob o ponto de vista da equipe técnica, não havia qualquer reparo pedagógico a ser feito na primeira versão da prova”, afirmaram.

Enquanto este absurdo acontecia na preparação do mais importante processo avaliativo de estudantes para o ingresso nas universidades públicas brasileiras e de muitas particulares, o presidente da República, em entrevista concedida durante sua viagem a Dubai, afirmava: "começam agora a ter a cara do governo as questões da prova do Enem. Ninguém precisa ficar preocupado. Aquelas questões absurdas do passado, que caíam tema de redação que não tinha nada a ver com nada. Realmente, algo voltado para o aprendizado."

Confesso que nada mais me causa surpresa neste desgoverno do Brasil, mas fiquei completamente indignado com esta situação. É absolutamente inadmissível que isto aconteça: interferência política no conteúdo de um exame para atender à linha ideológica de um governo anti-ciência, negacionista, despreparado, autoritário, que joga a todo momento com a desinformação da população. Isso me lembra a censura da ditadura militar brasileira, instalada no golpe de 1964, quando professores de história eram perseguidos e os conteúdos do que se ensinava nas escolas passavam pelo crivo do governo.

Não dá para aceitar que o Presidente do Inep, que segundo funcionários do órgão é extremamente despreparado para exercer o cargo que ocupa, pegue uma prova e saia riscando os itens por não gostar ou não aprovar seu conteúdo, obrigando o corpo técnico a refazer a prova por duas vezes. Isso representa um grande retrocesso, tanto para a instituição, quanto para o Exame Nacional, que vinha avançando em organização, eficiência e credibilidade nos últimos anos. O Inep tem 84 anos de existência e, vinculado ao Ministério da Educação, é uma das maiores e mais especializadas instituições de avaliação educacional do mundo. As provas do Enem, compostas por 180 questões retiradas do Banco Nacional de Itens, onde se encontram milhares de questões, são elaboradas por professores selecionados através de um edital.

A preocupação do governo federal deveria ter sido com a situação de milhões de estudantes pobres brasileiros, que não tiveram condições de se preparar adequadamente para as provas no período da pandemia, uma vez que não tiveram os recursos tecnológicos necessários para acompanhar o ensino remoto ou, até mesmo, tiveram que deixar de estudar para correr atrás da sobrevivência. O descaso do presidente da República com os empobrecidos deste país chega a causar revolta.

Nos próximos finais de semana, 3.109.762 estudantes, o menor número de inscritos no Enem desde 2005, vão buscar uma vaga no ensino superior, sonhando com um futuro melhor por meio da sua formação acadêmica. Infelizmente, o exame a que vão se submeter tem a cara desse governo. Lamento que esta geração de alunos tenha que passar por estes momentos sombrios. Espero que em breve possamos voltar a viver tempos de conquistas, avanços e progressos na Educação do Brasil. Vamos esperançar!