sexta-feira, 15 de abril de 2022

Páscoa na Sexta-Feira da Paixão

 



Nesta sexta-feira, em que a comunidade dos cristãos recorda a paixão e morte de Jesus, antecipou-se para mim a celebração da Páscoa da ressurreição. Uma grande alegria, misturada com um sentimento de alívio, tomou conta do meu coração. Logo de manhã, com a xícara de café ao meu lado, abri o celular para ler as mensagens recebidas dos amigos, e uma delas me informava: “A nenê já entrou no centro cirúrgico e iniciaram o procedimento”. Logo abaixo do áudio, uma foto da menina que ia ser operada. Ao vê-la, quase não acreditei, porque não esperava. Já explico o motivo de tanto júbilo.

No último dia 18 de março, estive na cidade de Coronel Sapucaia, divisa com o Paraguai, para fazer a entrega de uma emenda parlamentar na APAE do município. O recurso que destinei para a entidade foi investido na construção de uma piscina, para servir ao atendimento das crianças com deficiência. No ato da inauguração, estavam presentes membros da diretoria, voluntários e funcionários da instituição, algumas autoridades municipais, pais e mães dos alunos com seus filhos especiais. Quando chegou a minha vez de fazer uso da palavra, percebi que, enquanto falava da realidade das famílias que lutam por atendimento aos seus filhos com deficiência, um dos pais, que segurava sua filha no colo, assentia com a cabeça e derramava lágrimas com minhas palavras. Aquela cena me tocou. Terminadas as falações, enquanto todos conversavam e aguardavam o descerramento da placa de inauguração, aproximei-me daquele pai e vi que sua menina, D., tinha hidrocefalia. A criança, de cabeça grande e olhos já um tanto esbugalhados, se contorcia nos seus braços e tinha uma expressão de dor. Perguntei como estava o tratamento dela, e ele me disse que há meses vinha lutando para conseguir a cirurgia para implantação da válvula de drenagem do líquido que comprimia cada vez mais o cérebro de sua filha. Disse que, após muitas tentativas de agendamento da cirurgia sem sucesso, tinha procurado a Defensoria Pública do município e aguardava por alguma providência que pudesse beneficiar a menina. Pedi a ele que me passasse o nome completo da D. para que eu pudesse acompanhar o caso. Ao final da confraternização com as famílias, ao me despedir dos presentes, recebi um envelope que continha a foto da criança com seu nome completo.

Nunca utilizei do cargo público que exerço para solicitar privilégios em favor de alguém, influenciar decisões ou reivindicar algo que contraria a legislação ou os princípios da administração pública. Mas sempre procurei fazer o possível para que as pessoas tenham seus direitos fundamentais assegurados, principalmente quando se tratam de pessoas empobrecidas e vitimadas pelas injustiças e exclusão social. A foto da menina D. sobre a minha mesa de trabalho olhava para mim a todo momento e comprimia meu cérebro. Ficava imaginando como ela estaria se contorcendo de dores no colo do pai ou da mãe. Liguei na Defensoria e fui informado que uma ação judicial tramitava em favor da criança. Um parêntesis, nossa Defensoria Pública é muito atuante e faz jus à sua missão de garantir o acesso à justiça aos pobres e despossuídos. Alguns dias depois, fiquei sabendo que uma liminar havia sido concedida para garantir a realização da cirurgia que a criança precisava e que a família tanto aguardava. O receio, porém, era que o Estado interpusesse recurso à decisão judicial e atrasasse ainda mais o procedimento ou derrubasse a liminar. As notícias de Coronel Sapucaia chegavam dando conta que a criança sofria e chorava dia e noite com dores. Liguei para a Procuradoria Geral do Estado e tentei sensibilizar os procuradores para que não recorressem da decisão. Foi-me garantido que a liminar seria acatada e que a cirurgia seria realizada, mas que o Estado tinha o prazo de 60 dias para cumprir a decisão judicial. Um tanto quanto aliviado com as notícias, fiquei um pouco angustiado com este prazo. Meu cérebro comprimia. A informação agora era que D. estava internada, cada vez mais inquieta. Liguei para a Secretaria de Saúde, pedi atenção para o caso, tentei sensibilizar, tinha decisão judicial, era direito da criança, era uma urgência, hidrocefalia pode resultar em sequelas irreversíveis, deficiência mental, convulsões.... Tenho que dizer que o anjo da guarda da D., chamado Elvis, entrava na minha sala todos os dias, trazia as notícias sobre o seu estado de saúde, comprimia minha cabeça ainda mais e me lembrava de fazer as ligações para interceder pela criança. Depois de tudo, só me restava aguardar e torcer para que os prazos fossem reduzidos.

Nesta sexta-feira santa o Elvis me deu a notícia de que a cirurgia estava sendo realizada. Foi a celebração da minha Páscoa. O Estado cumpriu com seu dever. A família da criança garantiu o direito da sua pequena. Vida nova, alegria pascal para D. e para todos nós! Quero voltar à cidade de Coronel Sapucaia para conhecer o sorriso daquela menina. Quero vê-la na piscina da APAE brincando com as demais crianças. Quero olhar para seus pais e dizer-lhes que o amor deles por sua filha foi maior que a burocracia do Estado e foi capaz de tocar nosso coração, muitas vezes adormecido diante das injustiças dessa sociedade desigual e excludente.

Direito não é privilégio! É condição fundamental para se viver com dignidade. Só de pensar que a fila dos injustiçados está cada vez mais comprida, a indignação cresce e o desejo de lutar não se cansa, até que todos sejam vistos e respeitados.

Feliz Páscoa, D.!