sexta-feira, 21 de julho de 2023

Escolas Cívico-Militares: Sim ou Não?

 



 

No segundo semestre de 2022, fui convidado por um professor de sociologia para palestrar numa escola da rede estadual de ensino por ocasião do Dia Nacional da Consciência Negra. A ideia que ensejou o convite à minha pessoa era a de proporcionar um debate com os alunos sobre a lei de minha autoria que implantou as cotas raciais na Universidade Estadual e discutir a eficácia das ações afirmativas nas políticas públicas sociais. Fiquei muito lisonjeado com o convite, até porque esta é uma das coisas que mais me dão prazer: conversar com estudantes sobre temas da atualidade e de assuntos que têm a ver com suas vivências e interesses. Ao adentrar no estabelecimento de ensino, encontrei os alunos de todas as turmas enfileirados no pátio e militares uniformizados circulando ao redor deles. Um dos militares deu uma ordem com a voz em tom muito alto, e os alunos seguiram para as salas de aula numa marcha uniforme e em absoluto silêncio. Foi aí que me dei conta de que estava numa escola cívico-militar.

Tendo chegado na sala da turma com a qual eu iria conversar, fui levado até a mesa do professor e convidado a me sentar. Uma aluna, que estava em pé, ao meu lado, creio que a monitora dos colegas, deu um forte grito: “posição de sentido”, e todos se levantaram. Em seguida, falou uma frase de forma mecânica e com voz grave, ainda em tom alto e muito rápido, que quase não consegui entender. Sei que tinha alguma coisa a ver com minha palestra e com normas de respeito. Ao terminar, gritou: “entendido, turma?”. Ao que todos responderam, gritando: “sim”, batendo continência. “Descansar”, ordenou a monitora. E todos se sentaram. Em seguida, fui autorizado a proferir minha palestra. Eu, que sempre visitava escolas públicas para participar de comemorações, eventos e debater com os alunos, confesso que fiquei bastante constrangido, envergonhado mesmo, com a cena que acabara de assistir. Comecei a falar sobre o tema da minha palestra, mas um pensamento me atormentava o tempo todo: será este o modelo de educação pública que teremos no Brasil de ora em diante?   

No último dia 12 de julho, quase oito meses após aquela minha palestra, o Governo Federal anunciou o encerramento do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (PECIM) no país, criado por decreto em 2019 durante a gestão Bolsonaro. Foi uma decisão conjunta do Ministério da Educação e do Ministério da Defesa, que eram responsáveis pela gestão nacional do programa, sendo que os profissionais das Forças Armadas envolvidos serão desmobilizados de forma gradual, para não causar transtornos no ambiente e nas atividades educacionais. Vale lembrar que o referido programa não passou pela aprovação do Congresso Nacional, além do que não existe na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal nº 9.394/96) e no Plano Nacional de Educação – PNE (Lei Federal nº 13.005/14) qualquer previsão legal que permita às Forças Armadas atuarem na educação básica regular ou nenhum tipo de proposta ou estratégia para a criação de escolas cívico-militares no país. E se não há previsão legal para a implantação do programa na área educacional, o mesmo se pode afirmar sobre o desvio de finalidade das Forças Armadas.

O PECIM é um programa que amplia a desigualdade salarial na escola e privilegia os membros das forças de segurança que atuam nas atividades de apoio e gestão escolar. Ao invés de investir na formação e valorização do magistério, transfere recursos para profissionais que não pertencem à área da educação. Cada militar vinculado ao programa recebe mensalmente, de R$ 2.700,00 até R$ 9.152,00, dependendo da patente, além dos valores que já percebe como aposentado. O adicional mais elevado é maior, em média, que o valor do piso do magistério nacional e, somado aos seus vencimentos de militar, é bem maior que o percebido pelos diretores escolares. Em três anos de existência do PECIM, o orçamento disponibilizado custou aproximadamente R$ 98,3 milhões aos cofres públicos. Atualmente, somente das Forças Armadas, sem contar os policiais e bombeiros militares dos estados, 856 militares atuam no programa. Os investimentos significativos, extraídos do orçamento da Educação para manter militares reformados nas escolas públicas de ensino fundamental e médio em atividades de assessoria e suporte destoam da escassez de recursos que as redes de ensino investem para o pagamento da folha salarial de seus educadores. Os militares que atuam nas escolas cívico-militares não são considerados, para todos os fins, como profissionais da educação básica e, sendo assim, os gastos com militares inativos não podem ser computados como despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino, previstas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, caracterizando, portanto, desvio dos recursos vinculados estritamente à educação.

A justificativa para a realização do programa mostrou-se equivocada, ao pretender que o militarismo seria a solução para o enfrentamento das questões de indisciplina e violência nas instituições de ensino, além de outras advindas da vulnerabilidade social nas localidades onde as escolas públicas estão inseridas, e que suas características poderiam se tornar o tipo de atendimento universal previsto para a educação básica regular. Não há dados públicos que comprovem a eficácia do programa nem informações sobre o desempenho dos alunos que frequentam essa forma de ensino. Das 100 melhores escolas públicas do Brasil, nenhuma é militar. O programa, que pretendia ser um modelo para o setor educacional brasileiro, foi alvo de elogios e críticas, além de denúncias de abusos cometidos por militares, de assédio moral e sexual de alunos, interferências nos programas e planejamentos escolares. Mas, mesmo que houvessem dados positivos, a questão não se resume a resultados. A questão é bem outra. É de concepção e de modelo de educação que se pretende, para ser instrumento de formação para a cidadania e de construção de um país mais justo socialmente e democrático. O ponto central é que tipo cidadãos queremos formar para qual modelo de sociedade? Cidadãos críticos, responsáveis, cientes de seus deveres e direitos, participativos ou cidadãos bem adestrados na obediência a regras e comandos e que saibam bater continência a autoridades inquestionáveis?

O PECIM foi, antes de tudo, um modelo excludente, pois não abrangeu todas as escolas, e de custo elevado aos cofres públicos. Teve pouca adesão de gestores públicos locais, sendo que no auge do programa aproximadamente 200 escolas das 138 mil adotaram o método cívico-militar, ou seja, somente 0,28%. Nenhuma escola privada do Brasil aderiu ao programa e, no início deste ano, 109 escolas públicas abandonaram o mesmo. Pesquisa do Cesop/Unicamp revelou que 72% dos brasileiros confiam mais em professores do que em militares para atuarem nas escolas.

O Ministério da Educação tem por dever constitucional garantir a educação civil, pública, gratuita, democrática, de qualidade social e igual para todo e qualquer filho de brasileiro ou brasileira. As escolas cívico-militares se transformaram em estratégia do governo do ex-capitão do Exército para uso doutrinário e dentro de um contexto ideológico autoritário. O entendimento que temos é que os graves e complexos problemas de vulnerabilidade social, indisciplina e conflitos no interior das escolas públicas devem ser resolvidos com mais investimentos nos recursos instrucionais, valorização dos educadores (professores e administrativos da educação) e com aplicação prática dos princípios e estratégias pedagógico-educacionais. Os problemas das escolas públicas são mais relacionados à falta de investimento em infraestrutura e à desvalorização dos profissionais da educação do que à indisciplina ou a uma pretensa falta de patriotismo ou civismo por parte dos estudantes.

A escola não deve abrir mão das suas responsabilidades e nem transferir suas funções para outras instituições, assim como não cabe às Forças Armadas convocar professores para suas atividades de cunho militar. O problema da indisciplina na escola está muito mais relacionado com a incapacidade que as famílias do nosso tempo estão enfrentando para lidar com as pressões e influências da sociedade via meios de comunicação, redes sociais e, principalmente no mundo virtual da internet, que seduzem, transmitem informações e determinam comportamentos e modos de vida. Estes são muito mais fortes e poderosos do que os pais no seu esforço de educar e transmitir valores. Pais e mães não tem conseguido estabelecer limites no comportamento dos seus filhos e esperam que as escolas o façam, assumindo suas responsabilidades.

Outras questões que interferem de forma negativa no ambiente escolar devem ser analisadas de forma mais abrangente e com base científica, já que a escola reflete os problemas de uma sociedade em crise. Uso de drogas, depressão juvenil, transtornos de ansiedade, gravidez precoce, insegurança alimentar não são problemas gerados na escola ou pela escola, mas no contexto familiar e da sociedade excludente e desigual em que vivemos, e suas consequências devem ser abordadas pelas instituições de ensino como realidades vivenciadas por seus alunos, merecendo os encaminhamentos mais acertados à luz das teorias educacionais, com seminários, palestras, projetos, rodas de conversa, justiça restaurativa, combinados entre diretores-alunos-professores, busca de apoio profissional em psicologia e saúde quando necessários, num ambiente acolhedor e de diálogo.

Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”, ensinava Paulo Freire (Pedagogia da Indignação). A escola não pode tudo, mas pode fazer muito pelos adolescentes e jovens, muitas vezes em crise e sem perspectivas de futuro, para que voltem a sonhar e desejar um espaço de realização pessoal e profissional na sociedade. Querer transferir para os militares as funções dos educadores é o mesmo que admitir a incompetência destes últimos no cumprimento do seu mister. Disciplina, organização e respeito são essenciais para que a educação aconteça e, essas questões, a escola sabe muito bem como fazer, na qualidade de agência especializada na transmissão e construção de conhecimentos e na capacidade de leitura da realidade onde vivem seus alunos.

Escola com regime militar? Pode ser uma opção para quem deseja seguir a carreira militar.

Pedro Kemp